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Paulo Lotufo

Contar mortes na Covid-19 é um ato de empatia

Um legado da pandemia será que a preservação da vida se tornou o principal

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Paulo Lotufo

Epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP

A pandemia da Covid-19 nos obriga a contar as mortes dia a dia. O governo federal se incomoda com o foco nos óbitos. Inicialmente, comparavam mortes devido ao coronavírus com aquelas devido às doenças crônicas.

Um absurdo equivalente ao de minimizar a tragédia de Brumadinho, em 2019, que vitimou 270 pessoas, comparando esse número de vítimas ao número equivalente de mineiros mortos por câncer durante quatro dias em 2018. No entanto, essa comparação deixou de ser interessante para o governo federal quando a Covid-19 passou a matar mais do que as 980 mortes por doenças cardiovasculares ocorridas diariamente nos anos anteriores.

 O casal de epidemiologistas da USP Paulo Lotufo e Isabela Bensenor
O casal de epidemiologistas da USP Paulo Lotufo e Isabela Bensenor - Divulgação

O novo artifício foi utilizar canhestramente a “morte por milhão”. Por serem neófitos em epidemiologia, eles se referem à taxa de mortalidade que é usualmente apresentada por 100 mil habitantes. A taxa de mortalidade é a razão do número de mortes pela população correspondente. Para se calcular uma taxa, condiciona-se que na população de referência (denominador) sejam contabilizadas as mortes de pessoas que estariam incluídas nos casos (numerador). Por exemplo, a mortalidade materna é calculada sobre o número de mulheres em idade fértil, e não sobre todas as mulheres de uma localidade.

Na pandemia, com temporalidades distintas atingindo diferentes regiões, as taxas devem ser calculadas pela população das regiões atingidas, e não pela população de todo o país. Assim, comparar taxas do Brasil com as da Bélgica, onde 100% do país foi atingido pela Covid-19, é um equívoco repetido.

Outro ponto relevante é que taxas de mortalidade implicam necessariamente o ajuste por idade, principalmente em uma epidemia que atinge os mais idosos. Na comparação entre localidades, como entre os distritos da cidade de São Paulo, a comparação das taxas ajustadas por idade mostrou risco 58% maior nos bairros mais pobres, porque o risco de morte abaixo dos 60 anos de idade tem sido muito maior nos bairros pobres.

A quantificação de mortes pode ser realizada por contagem simples dia a dia, e há instrumental estatístico apropriado, mas não utilizado, para verificar se as tendências são estatisticamente significativas ao apontarem aumento, estabilidade ou queda.

No entanto, o mais importante para quantificar o impacto da epidemia na mortalidade de uma sociedade é comparar o número de mortes em uma localidade no período da epidemia com o número de óbitos ocorridos em períodos equivalentes em anos anteriores. Nós conseguimos mostrar que houve aumento estatisticamente maior em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Manaus.

Esse indicador é mais preciso do que o número de mortes por casos comprovados pela Covid-19, porque mostra a letalidade do coronavírus em outras condições que desconhecíamos, principalmente as cardíacas e renais. Além de permitir o efeito competitivo no atendimento médico-hospitalar provocado pelo excesso de casos de Covid-19, em que pessoas que se acidentaram ou sofreram ataque cardíaco ou complicações de doenças crônicas não conseguem atendimento porque as salas de emergência e leitos de internação estão ocupados por pacientes com o coronavírus. Não foi à toa que órgãos de imprensa como Financial Times, The Economist e The New York Times utilizaram esse indicador. É interessante mostrar, por exemplo, que o excesso de mortes em São Paulo em 2020 nunca superou 70%, enquanto em Nova York atingiu 400%.

Descrever o número de óbitos é exercício de compaixão. Um legado da pandemia atual será que a preservação da vida se tornou o objetivo principal da sociedade. Brasileiros, devemos nos orgulhar que não criamos critérios para salvar ou não salvar uma vida. Aqui não ocorreu o mesmo que na Itália, onde vagas em terapia intensiva foram negadas aos idosos.

Umberto Eco distinguiu aqueles que “brigam pela vida” em contraposição àqueles que “vivem para a briga”. Os primeiros criaram rede de apoio para minimizar as mazelas de uma doença e valorizam a vida. Os segundos boicotam iniciativas, fazem troça da morte com enterros simulados em restaurantes gaúchos, em passeios públicos paulistanos ou chutando cruzes em praias cariocas.

A “taxa por milhão” utilizada para mostrar que o Brasil teria risco menor de Covid-19 do que Andorra ou San Marino é um marcador da falta de empatia. Os que dignificam a vida continuarão a contar morte a morte para monitorar a pandemia, para reverenciar aqueles que se foram e para consolar os seus familiares e amigos que nem sequer conseguiram honrá-los em velórios e enterros dignos pelas condições impostas pela contagiosidade da doença.

A pandemia nos colocou em um outro marco civilizatório. Contar as mortes com critérios científicos é a melhor forma de honrar aqueles que partiram.

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