Descrição de chapéu
Maria Francisca Pinheiro Coelho

O totalitarismo como forma de governo

Em momento de insegurança, é importante relembrar Hannah Arendt

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Maria Francisca Pinheiro Coelho

Socióloga, é professora titular do departamento de sociologia da Universidade de Brasília

Vivemos tempos sombrios no Brasil. Temos um governante ex-militar eleito pelas regras do jogo democrático, mas que simpatiza com regimes autoritários e não perde tempo em elogiar a ditadura militar que vigorou no país durante 21 anos. Em momento de perplexidade e de insegurança quanto à nossa democracia, talvez seja importante retomar algumas das reflexões da pensadora judia Hannah Arendt (1906-1975) em sua obra inaugural, “Origens do Totalitarismo”, publicada em 1951, no tempo da Guerra Fria.

O livro recebeu muitos elogios, mas gerou também grande polêmica, justamente porque a autora igualou o nazismo e o stalinismo em termos ideológicos, os classificando de regimes totalitários. Arendt foi criticada pela esquerda, que a considerou conservadora, e pela direita, uma comunista. Sua resposta, que a orientou em todos os seus livros, foi que precisava “pensar sem corrimão” (“thinking whithout a bannister”), com base nos fatos, postura que sempre registrou em suas análises.

A filósofa Hannah Arendt em Paris, onde morou de 1933 a 1941 - Reprodução

A princípio, seria muito difícil identificar o nazismo com o stalinismo, como definiu Hannah Arendt. Mas Arendt o fez com base em uma caracterização da ideologia dos dois regimes, que classificou como a ideologia do terror. Segundo ela, esses dois tipos de governo não se enquadravam apenas na denominação de ditaduras.

Seria mais do que isso, porque se apoiaram em uma ideologia baseada na lógica de uma ideia como se fosse uma lei natural: a lei da raça pura e a lei da vitória da classe operária, em nome das quais foram praticados todos os crimes. No caso de Hitler, na necessidade de eliminação dos judeus e outras minorias; e de Stalin, na morte de seus opositores, os bolcheviques. Essa era a sina de qualquer um que pusesse em risco o objetivo discursivo final desses governantes.

De acordo com Arendt, essas duas experiências históricas pregavam a eliminação do inimigo para que a lei se cumprisse. E o inimigo objetivo poderia ser transmudado, a qualquer momento, em inimigo invisível, porque na cabeça doentia desses governantes totalitários poderia ser qualquer pessoa que sonhasse em ameaçar seus planos. Nesses termos, a ideologia totalitária é compreendida como a lógica das ideias que visa o domínio total.

O totalitarismo não convive com “o outro”, com a vida pública, ressalta Arendt. A obra “Origens do Totalitarismo” se baseia em uma análise histórica, documentos e discursos da época dos governos de Hitler e de Stalin. Sugere a tese do totalitarismo como uma ideologia e nova forma de governo, diferente das tiranias e ditaduras que perduram enquanto não abatem os inimigos.

Nesses termos, o totalitarismo seria uma forma de governo que visa o domínio total, por isso mesmo, um regime autodestrutivo. Mas não se pode concluir, assevera Arendt, que como uma nova forma de governo esses regimes vão se reproduzir na história, como as ditaduras e tiranias do passado. Pode ser que sim, pode ser que não, vai depender das escolhas políticas e ações dos indivíduos.

A valorização diuturna da democracia e da esfera pública como espaços livres da palavra e da ação é uma conquista e um legado aos quais não se pode renunciar para o próprio bem do ser humano. As características do totalitarismo, ou seja, das experiências do nazismo e do stalinismo, como analisou Hannah Arendt, são a destruição da esfera pública —a esfera da política— e da esfera privada —a esfera da família—, produzindo um estado de desconfiança permanente no tecido social. São situações que podem levar as pessoas ao sentimento da mais profunda solidão. A solidão não como uma condição da vida ou escolha individual, mas como uma imposição social. A solidão como um sentimento de não pertencimento ao mundo. A solidão causada pela falta da ação compartilhada entre indivíduos livres e iguais.

Após anos de lutas para consolidação da democracia no Brasil, não deixemos que ações antidemocráticas levem à desconstrução da nossa liberdade!

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.