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Gustavo Daou Lucas

Reforma tributária e as omissões do debate

Deve-se levar em conta também o patrimônio e a renda pós-impostos

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Gustavo Daou Lucas

Professor-adjunto do Instituto de Economia da UFRJ

​Em geral, considera-se que a tributação em um país com muita desigualdade social como o Brasil deveria pesar mais sobre “os mais ricos”. Quase todos os analistas hoje dizem que a tributação precisa ser mais progressiva (isto é, cobrar proporcionalmente mais dos que podem contribuir mais).

O passo seguinte no debate é definir quem são “os mais ricos”. O debate atual é viciado no conceito de renda pré-impostos. Ordene os contribuintes por renda bruta em uma fila imaginária e divida essa "fila" em dez partes (“decis”). A parte inicial corresponderá aos 10% mais pobres, e o final aos 10% mais ricos. Para poder entrar em cada parte haverá uma renda que separa os "decis". Para entrar nos 10% mais ricos, usando os dados mais aceitos, é preciso receber R$ 5.300 mensais brutos. A conclusão dos analistas (à direita e à esquerda, com raras exceções) tem sido algo como “a carga tributária deve necessariamente aumentar para os que estão nesse grupo”.

Essa definição de “rico", porém, é extremamente limitada. Imagine, por exemplo, dois assalariados que ganham R$ 6.000 brutos e que são igualmente “ricos”, segundo essa definição. Suponhamos que um deles seja CLT, e o outro se insira no regime de pessoa jurídica.

A tributação sobre ambos é completamente diferente: para o primeiro valerá a alíquota máxima do Imposto de Renda; já para o "pejotizado", a alíquota será nula. Ou seja, a igualdade de renda bruta nesse caso se reflete em uma desigualdade de renda pós-impostos. Quando ocorre esse problema de duas rendas brutas iguais serem tributadas de forma diferente, ocorre violação da "equidade horizontal" (igualdade de tributação hipotética que deveria ocorrer entre duas pessoas de capacidade contributiva igual).

Isso é possível devido às inúmeras possibilidades de "elisão fiscal" (formas legais de pagar menos impostos) disponibilizadas pelas leis brasileiras. A diferença entre PJ e assalariado é uma dessas. O mesmo problema ocorre se compararmos um assalariado e uma pessoa que ganha o mesmo valor em dividendos.

A primeira conclusão é: eliminar distorções na equidade horizontal deveria ser urgente. E a segunda é: discutir o fardo da tributação olhando apenas a renda pré-impostos é um erro. O problema maior da discussão toda, porém, não foi dito explicitamente até agora. É algo relativamente óbvio, mas, por vícios de economistas, do direito tributário brasileiro e de classe social, acaba sendo esquecido: patrimônio (riqueza, ativos) não entra na definição de “rico” usada pelos debatedores. Imóveis, ações, títulos públicos, cotas em fundos de investimento, terras e outros ativos desaparecem, e analisa-se apenas a distribuição da renda bruta.

Voltemos ao exemplo do assalariado. Seriam igualmente ricos dois assalariados com o mesmo salário de R$ 6.000, sendo que um deles vive na casa que herdou e o outro vive de aluguel e possui apenas os “frutos do próprio trabalho”? Evidente que não. Somente na estranha definição baseada em renda bruta que isso é verdade. Portanto, as lições que ficam sobre a definição adequada de “rico” são: além da renda bruta, deve-se levar em conta também patrimônio e a renda pós-impostos.

É sabido que no Brasil a tributação sobre a renda de ativos é muito inferior à de salários. Além do fato de que esses mesmos ativos são transferíveis ou herdáveis a uma das alíquotas de herança mais baixas do Ocidente. Isso deveria mudar urgentemente, com a introdução de alíquotas progressivas em âmbito federal no imposto de herança.

Em relação ao Imposto de Renda, é necessário criar diversas faixas/alíquotas adicionais para rendas mais altas. No modelo atual, um assalariado que ganha R$ 4.800 mensais entra na mesma faixa que um jogador de futebol de grande clube! A tributação de dividendos, atualmente nula, deveria seguir alíquotas similares (e não um valor percentual único, como muitas vezes é proposto). Outro fato importante é que, mesmo dentro dos 1% mais ricos, existe muita desigualdade: todos que ganham acima de R$ 33 mil pertencem a esses 1%, mas a renda média do grupo é de R$ 109 mil! Isso deixa claro como um número tão pequeno de faixas é um problema.

Em suma, se quisermos falar seriamente de progressividade nos impostos diretos, a definição de capacidade contributiva não pode se restringir à distribuição da renda bruta, como vem sendo feito. Ignorar patrimônio e injustiças tributárias existentes é criar homogeneidade onde não há. É como se todos os contribuintes mais abastados fossem o inquilino que, com seus R$ 6.000 mensais (brutos!) enriquece —tal qual um herói de fábula liberal— exclusivamente “através do próprio suor”.

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