Descrição de chapéu
Lucas Pedretti

Nunca mais

Assim como foi com a ditadura, seguiremos na imposição do esquecimento?

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Lucas Pedretti

Historiador e doutorando em sociologia na UERJ; foi pesquisador do documentário "Narciso em Férias"

Como as sociedades devem lidar com o legado deixado por períodos marcados pela violência? O Holocausto, o apartheid e as ditaduras militares foram alguns dos eventos históricos que levaram diferentes países a se defrontar com essa questão. Nas últimas décadas, tem se desenvolvido todo um campo político-jurídico especificamente voltado para enfrentar o dilema: a justiça de transição.

É certo que cada povo deve lidar com seus passados traumáticos de acordo com suas próprias características sociais, econômicas, culturais e políticas. Ainda assim, a justiça de transição aponta que há instrumentos capazes de ajudar nesse acerto de contas. Dentre eles, estão as reformas das instituições de justiça e de segurança, as comissões da verdade, os programas de reparação e as políticas de memória. Hoje, sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos reconhecem e defendem que a memória, a verdade, a reparação e a justiça são direitos que devem ser promovidos e resguardados pelos Estados.

É comum que as sociedades recém-saídas desses conflitos optem pela via do silenciamento, inclusive para que as responsabilidades civis sejam diluídas —especialmente dos setores econômicos que se beneficiaram da violência no passado. Mas, em alguns casos, a insistência das vítimas e de seus familiares em não esquecer —e não deixar que os outros esqueçam— é capaz de levar para o centro do debate público a necessidade de rever criticamente o passado.

Quando isso ocorre, abre-se o caminho para as medidas da justiça de transição, as quais, se bem-sucedidas, são capazes de construir uma memória socialmente compartilhada de repúdio ao que passou. Essa memória, baseada no imperativo do “nunca mais”, funciona como uma vacina contra o retorno da barbárie.

A forma como o Brasil lidou com o legado de sua última ditadura (1964-1985) é um caso paradigmático de justiça de transição. Trata-se, porém, de um paradigma do que não deve ser feito. O pontapé inicial desse processo foi a autoanistia de 1979, que garantiu a impunidade de militares que torturaram, assassinaram e desapareceram com corpos.

O forte lobby militar e policial na Constituinte manteve intocadas as estruturas e a legislação de um Estado militarizado —como a Lei de Segurança Nacional, que agora volta à ordem do dia. Durante a democracia, deixamos de pé as homenagens aos ditadores e jamais nos engajamos em um processo de revisão da memória sobre o período —de modo que há pouquíssimos museus, memoriais e espaços de memória sobre a ditadura no país, por exemplo.

Com a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), avançamos um pouco mais na direção das boas práticas de justiça de transição. Foi, porém, a gota d’água para os setores que querem garantir o silêncio e a impunidade em relação aos crimes do passado. Como o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas deixou claro no livro recém-lançado com seu depoimento, a instalação do órgão representou um ponto de inflexão na relação dos militares com o Partido dos Trabalhadores e com a ex-presidenta Dilma Rousseff. Com receio de que finalmente fossem responsabilizados —seja pela justiça, seja pela opinião pública— pelas graves violações aos direitos humanos que promoveram, os fardados decidiram retomar a velha tradição de intervir na política, abrindo caminho para o cenário que vivemos hoje.

Sob o argumento de que era preciso deixar a ferida cicatrizar, não tratamos dela. Como era de se esperar, o ferimento gerou pus —e o pus chegou à Presidência da República. É preciso lembrar, porém, que a forma como lidamos com o passado ditatorial não foi uma exceção na história brasileira. Pelo contrário: foi mais um episódio de uma longa tradição de impor o silêncio sobre crimes do passado.

Lembremos, afinal, de que o Brasil queimou os arquivos da escravidão e inventou o mito da democracia racial, mesmo sendo o país das Américas que mais recebeu negros sequestrados no continente africano e o último a abolir a prática.

Em breve —esperamos que o mais breve possível— seremos novamente obrigados a enfrentar a questão sobre como lidar com um passado de barbárie. Apesar de Jair Bolsonaro, a pandemia vai passar, mas deixará um saldo de centenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. E como tem insistido a Anistia Internacional: mortes evitáveis têm culpas atribuíveis.

Até aqui, o presidente tem sido capaz de sustentar sua política genocida com o apoio de uma parcela significativa da sociedade. Para além de seu já famigerado um terço de apoiadores que parece resistir a qualquer evento, o último Datafolha mostrou que sua condução da pandemia é avaliada como regular ou ótima/boa por mais de 40% das pessoas, que apenas 43% o consideram o principal responsável pela situação atual da pandemia e que metade da população é contrária ao impeachment.

Vários fatores concorrem para explicar porque os sujeitos naturalizam a barbárie no momento em que ela ocorre. Felizmente, porém, como mostram os processos bem-sucedidos de justiça de transição, os sentidos que uma sociedade confere a um evento passado estão sempre sendo construídos e reconstruídos na memória coletiva. Por isso, se o Brasil quiser obter anticorpos contra os vírus do autoritarismo, do negacionismo e do extremismo de direita, será preciso refletir desde já sobre o que faremos com o legado das mortes que o presidente hoje fomenta e promove.

Seguiremos no caminho que historicamente adotamos no país, baseado no silêncio e na imposição do esquecimento? Ou faremos a justiça de transição que deveríamos ter feito há três décadas, quando saímos da ditadura?

Bolsonaro precisa responder na justiça comum e, de preferência, também em tribunais internacionais. Deve ser responsabilizado diretamente pelo genocídio em curso. Mas isso não basta. Novas pandemias talvez sejam inevitáveis no futuro; novos Bolsonaros, não. Para garantir a não repetição desse erro, precisaremos fomentar também a verdade, a memória e a reparação sobre os crimes cometidos à luz do dia por aqueles que hoje governam o país.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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