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Renata Motta, Marco Antonio Teixeira e Eryka Galindo

Pandemia da insegurança alimentar

Vivemos a ruptura de consensos societários construídos há décadas

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Renata Motta

Socióloga, é professora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim

Marco Antonio Teixeira

Sociólogo, é pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim

Eryka Galindo

Historiadora, é pesquisadora de doutorado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim

Como o país que saiu do Mapa da Fome da ONU em 2014 apresenta 59% dos domicílios em insegurança alimentar em 2020? Este é o resultado da pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenada pelo do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim.

Insegurança alimentar (IA) é quando há redução ou incerteza quanto ao acesso regular aos alimentos, em quantidade e qualidade adequadas. Sua expressão mais grave se configura em uma experiência de fome, situação vivenciada por 15% dos domicílios brasileiros.

Antes da pandemia, a maioria dos domicílios em situação de IA consumia irregularmente (menos de cinco vezes na semana) alimentos saudáveis como carnes, legumes e frutas. Com a pandemia, esse índice subiu para mais de 85% —e acelerou um processo que já havia sido identificado por pesquisas do IBGE. Dados do instituto revelaram 37% de IA medidos pela POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) 2017/2018 —um crescimento significativo frente ao resultado da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2013, de 23%.

Esse triste retrato mostra que estamos vivendo a ruptura de consensos societários construídos desde a redemocratização do país. A década de 1980 marcou o pacto nacional pela democracia como melhor forma de governo e, nos anos 1990, iniciou-se a construção de um consenso nacional pela superação de formas cruéis de desigualdades sociais, como a fome.

De uma abordagem assistencialista e emergencial, na década de 1990, o país optou, no começo do século, por uma agenda política de promoção do direito humano à alimentação adequada. A caridade e a doação de cestas básicas foram progressivamente substituídas por uma abordagem multidimensional da questão, abarcando o incentivo à produção de alimentos pela agricultura familiar, políticas de alimentação escolar e distribuição de renda e a estruturação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, pautadas pelo diálogo e participação da sociedade civil organizada.

Assim como a gestão política federal da pandemia de Covid-19 optou por desconsiderar décadas de acúmulo institucional e conhecimento do Ministério da Saúde, do SUS e de sanitaristas, o governo também desmantelou o arcabouço institucional construído nas últimas décadas para a promoção do direito à alimentação adequada. Em 2019, o governo extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, deixou de convocar a sociedade civil por meio da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e cortou o orçamento dos programas de aquisição de alimentos da agricultura familiar e de alimentação escolar. As políticas de incentivo a um modelo agroexportador de commodities têm se intensificado, sem mediações sobre seu impacto na oferta nacional de alimentos.

Essas medidas agravaram o quadro anterior, caracterizado pelo teto constitucional de gastos, fim da política de valorização do salário mínimo e fragilização dos direitos trabalhistas. A pandemia de Covid-19, os altos níveis de desemprego, a alta da inflação e dos preços de alimentos em 2020 pioraram o acesso da população aos alimentos.

Quanto menor a renda per capita do domicílio, maior a IA. Nossa pesquisa mostrou que a IA está presente em 71% dos domicílios com renda per capita de até R$ 500, sendo de 26% entre aqueles com renda per capita superior a R$ 1.000.

O auxílio emergencial contribuiu para atenuar os efeitos da insegurança alimentar: 63% das pessoas que o receberam admitiram usá-lo para comprar comida. Ainda assim, a IA era alta. Os dados mostram as desigualdades alimentares não apenas como reflexo da renda, mas também de desigualdades de gênero, raça ou cor, regiões e entre áreas rurais e urbanas.

É possível inferir que os brasileiros encontram mais dificuldades para garantir comida na mesa em 2021: os indicadores da pandemia só pioram, com recordes diários de mortes, a economia patina sem sinais de recuperação e o auxílio, depois de um período sem qualquer pagamento, finalmente voltou, mas para um grupo reduzido e com um valor menor.

A pauta da IA ganhou centralidade nas últimas semanas com novos dados de diferentes pesquisas mostrando o tamanho do problema, que não deverá sair da agenda pública, obrigando os três Poderes a apresentar soluções robustas para garantir à população seu direito à alimentação. Vencer as pandemias da Covid-19 e da insegurança alimentar são desafios urgentes para o Brasil.

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