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Gustavo Treistman

Entre tiros e vírus: diário de um médico do front

Estou cansado e revoltado, mas não mais que meus pacientes e os moradores do Jacarezinho

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Gustavo Treistman

Médico do SUS no Rio de Janeiro

7h da manhã. A caminho do trabalho, ligo o rádio: “Operação no Jacarezinho”. Mais uma operação, e no horário de pico. Logo as notícias vêm: cinco pessoas mortas e trabalhador ferido no metrô.

"Não podemos nem ir em paz para o trabalho", penso comigo. Vejo o grupo do WhatsApp do meu trabalho em Manguinhos —vizinho ao ​Jacarezinho—, e meus colegas estão desesperados. Por um acaso, hoje (6 de maio) trabalharei em outra localidade.

Já há três pacientes me esperando. Peço para a primeira entrar. Ela vem de muletas, com dor e cansaço por ter subido as escadas. Piorou desde a última vez que nos vimos e pode estar com algo grave. Já tentei encaminhá-la para dois serviços diferentes. Mas, até agora, parece que não há lugar para atendê-la.

Examino-a; ligo para um, mando e-mail para outro... E já tem uma hora de atendimento. Vou tentar resolver isso depois. Termino a consulta e olho rapidamente o celular: 12 mortos no Jacarezinho.

Há oito pacientes na fila de espera. Peço para o próximo entrar. HIV positivo. A mulher não faz exames há anos.

— "O que aconteceu, dona Maria?", pergunto.

— "Sabe como é, toda vez que marco consulta e venho, não tem mais médico. Parece que ninguém quer ficar aqui", responde.

Ela tem razão, ninguém quer ficar aqui. As condições de trabalho são uma m... O salário foi reduzido no ano passado e sempre atrasa. Não temos nem equipamentos de proteção adequados. E, com a pandemia, os atendimentos dispararam.

Termino a consulta. Já são 15 mortos no Jacarezinho.

Sigo atendendo até a hora do almoço. Peço uma quentinha com muito carboidrato: energia rápida para dar algum prazer momentâneo. Mal engulo a comida e já preciso voltar.

Peço para mais um paciente entrar. Ele não entra. É cadeirante, e o elevador está quebrado.

Desço para atendê-lo numa sala pequena, com o ar-condicionado quebrado. O paciente está grave e bem magro. Há duas semanas atrás o encaminhei para internação. Ficou apenas dois dias, e o mandaram para casa sem resolver seu problema. Tento tranquilizá-lo e digo que vou ajudá-lo. No SUS, somos espécies de heróis sem capa que tentam resolver tudo mesmo sem ter como.

Já são 25 mortos no Jacarezinho!

Subo e vejo que a fila do lado de fora está enorme. Estão irritados e com razão. Do lado de dentro, vou fazendo o possível. A garganta vai secando. Quero água, mas não tem copo. Quero gritar! Mas suporto a sede e sigo atendendo.

Finalmente termino. Na verdade, já deveria ter ido embora há uma hora. Mando mais alguns e-mails para tentar resolver o problema daquela primeira paciente do dia.

19h. Finalmente vou para casa. Entro no carro e ligo o rádio: “Maior chacina da história do Rio!”.

A polícia matou 24 “bandidos” na operação. Julgaram, condenaram e executaram. Tudo isso numa cidade que bate recordes de casos de Covid-19.

Estou cansado e revoltado. Mas, não estou mais cansado do que meus pacientes, nem estou mais revoltado do que os moradores do Jacarezinho que estão entre os tiros de fuzil e o novo coronavírus.

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