Descrição de chapéu
Marcela Almeida

Retrato de uma hecatombe anunciada

De longe, em vão, tentei desacreditar as notícias que lia, a negação insultuosa

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Marcela Almeida

Médica psiquiatra, é professora da Faculdade de Medicina de Harvard e diretora médica do Cambridge Hospital (EUA); lê a versão digital da Folha há 20 anos

Vivendo há duas décadas fora do Brasil, foi natural e progressivo o declínio do meu contato com o país. Felizmente, a agitação da vida que corre a passos largos também vem com uma panaceia tecnológica que inclui esta Folha —que me fora apresentada aos 9 ou 10 anos de idade por meu avô, Walter. Ele me levava religiosamente à banca de jornais aos domingos de manhã, numa tradição que envolvia gibis para mim, jornais para ele. Outrora político de prestígio na esfera regional, pioneiro e desbravador, aos domingos o seu papel era de construtor de memórias para a neta e, indiretamente, expansor de horizontes, amplificador de vocabulário, instigador de ideias.

Ávido leitor e curioso-mor, meu avô engolipava as páginas sem piscar os olhos, a tinta preta borrando seus dedos curtos, um balbuceio aqui, umas risadas acolá. Vez ou outra me chamava, ou quem estava por perto, para mostrar alguma coisa que tinha lido. E, assim, talvez sem saber, ele foi despertando a minha própria curiosidade e senso crítico.

As visitas às bancas de jornais em algum momento pereceram frente à conveniência das assinaturas e, mais tarde, das versões digitais, menos ricas em memórias e poupadas de manchas nos dedos, mas que me permitiam acompanhar os desdobramentos da minha terra de origem apesar dos 7.000 km que nos separavam.

Nos últimos dois anos, em tentativas tão inconscientes quanto fúteis, por vezes busquei descreditar as notícias que lia de fontes, tanto daqui quanto daí, que assolavam o Brasil pela forma (meio disforme) como o país conduzia a pandemia. Constatar que o retrato era fidedigno foi doloroso. Da negação insultuosa à ciência à morosidade na obtenção de equipamentos hospitalares ou de proteção individual, da dissuasão ao uso de máscaras ou distanciamento social à recusa pela compra de vacinas, muitas vezes eu duvidava se o que estava lendo era realmente acurado —e era.

"Gripezinha", "país de maricas", "frescura" e "mimimi". "Cloroquina", "tubaína", "ivermectina", "jacaré". "Brasileiro não pega nada", "economia em primeiro lugar", "e daí?".

Por trás de mantras que alienavam o povo, instigando-o a aglomerações e a não adoção de medidas preventivas, de longe eu assistia, incrédula e impotente, ao Brasil colapsar.

Em abril, com número recorde de mortes de 4.195 em um único dia, hospitais sem leitos intensivos, ventiladores ou medicamentos para intubação, muitos foram às ruas em demonstrações de apoio ao governo, perpetuando ondas de doença num tsunami sem-fim.

Li, apreensiva, sobre cada negociação infrutífera com fabricantes de vacinas —mais de uma dúzia de ofertas e 70 milhões de doses, inclusive à metade do preço pago por outros países. Acompanhei a árdua e desmoralizante batalha que os brasileiros travavam para conseguir uma dose. Celebrei a chegada das primeiras ampolas da Pfizer. O dia era 29 de abril de 2021: 8 meses, 14.592.886 casos e 401.417 mortes depois das primeiras ofertas da fabricante. E também cerca de um mês depois de meu sogro ter sido contaminado com o vírus ao qual sucumbiu.

Todo o seu confinamento e solidão, medos e sacrifícios, isolamento e cuidados não resistiram à indiferença de um povo por anos fermentado em uma caquistocracia donde brotam leveduras de descaso e mortes. Faltava tão pouco. Juntou-se a seus 14 milhões de conterrâneos infectados numa espera inútil por uma dose de vacina, numa desesperadora súplica por bom senso —ambas tão abafadas quanto os seus pulmões. Amontoou-se a outros 400 mil que morreram na esperança ingênua em sua pátria algoz. Ó pátria amada, maltratada (Salve! Salve?).

TENDÊNCIAS / DEBATES
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