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Letícia Marquez de Avelar e Rafael Negreiros Dantas de Lima

As escolhas do poder público e as vidas impactadas

Retirada de moradores na cracolândia expõe violações e desrespeito à lei

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Letícia Marquez de Avelar

Defensora pública, é coordenadora do Núcleo Especializado da Cidadania e Direitos Humanos

Rafael Negreiros Dantas de Lima

Defensor público, é coordenador do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo

Em outubro de 2021, durante quatro dias, pessoas na cidade de São Paulo foram acordadas aos berros. Guardas-civis e policiais armados as expulsaram de suas casas sem lhes dar tempo para retirar pertences, utensílios, documentos. Esses moradores foram os "sortudos", que ainda estavam em suas residências quando chegaram os agentes; outros saíram para trabalhar cedo e, quando voltaram, já não puderam entrar —nem sequer tiveram a oportunidade de retirar o que quer que fosse.

Não houve apenas expulsão de pessoas: imóveis foram lacrados e emparedados na região conhecida como cracolândia, no centro da cidade. Nenhum aviso prévio foi dado aos moradores e, durante a operação (armada, lembre-se), não foi fornecida nenhuma explicação nem apresentado qualquer documento.

Família de Josimar e Fabiana da Cruz Moraes após ação de despejo da Prefeitura de São Paulo na região da cracolândia - Mariana Zylberkan - 21.out.21/Folhapress

A Defensoria Pública atendeu algumas dessas pessoas. Os relatos —todos no mesmo sentido quanto à truculência dos agentes— foram registrados e apresentados a um juiz, juntamente com inúmeras outras provas das violações praticadas pela Prefeitura de São Paulo, inclusive vídeos feitos durante as ações.

No último dia útil de 2021, uma decisão judicial foi proferida condenando a municipalidade a prestar, em tese, atendimento habitacional no valor de R$ 400 aos moradores —idosos, crianças, pessoas com deficiência, em tratamento de saúde, famílias inteiras— que foram expulsos de suas casas. A prefeitura não se conformou com a decisão e recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgará o recurso.

É no mínimo contraditório que o poder público, a quem cabe garantir os direitos assegurados pela Constituição Federal, seja aquele que mais os viola. Mas o que causa mais estranheza neste caso é que a prefeitura tenha recorrido da decisão que determina a prestação de atendimento habitacional. Além de evidentemente tratar-se de uma obrigação (afinal, foi a própria municipalidade quem deixou as pessoas ao relento, "sem lenço e sem documento"), é fato que os recursos necessários para a garantia deste tão básico direito que é a moradia constituem valor inexpressivo para a administração paulistana, cujo Orçamento aprovado na Câmara, para o ano de 2021, foi de R$ 67,9 bilhões. Conforme notícia de 16 de dezembro de 2021, a Prefeitura de São Paulo ainda teria à época R$ 8,6 bilhões em caixa (cerca de 13%), que não teria conseguido gastar no ano —sendo que na Secretaria da Habitação, especificamente, teriam sobrado cerca de 70% da verba.

A desculpa de que os imóveis estariam em condições precárias, oferendo risco aos seus ocupantes, não convence. Se houvesse de fato preocupação com a vida das pessoas teria havido encaminhamento à rede socioassistencial, teriam sido ofertadas alternativas habitacionais, teria havido tratamento digno, explicações, tempo para a retirada de pertences. Antes de tudo, teria havido respeito à lei. Mas não foi essa a escolha da municipalidade, que acabou despejando mais pessoas nas ruas de São Paulo para se somarem aos 31.884 indivíduos que já estão nesta situação. Que escolha é essa?

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