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Carlos Bezerra Jr.

Indignação esperançada

Censo da população de rua em SP é retrato de história que precisa mudar

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Carlos Bezerra Jr.

Médico, é secretário municipal de Assistência Social e Desenvolvimento Social de São Paulo

Às vezes me pego pensando sobre o que diria dom Pedro Casaldáliga —autor da frase "A esperança só se justifica naqueles que caminham"— sobre o Brasil de hoje. Casaldáliga pregava de forma comovente sobre a vida do "peão" brasileiro alijado de direitos básicos e condenado a viver de farelos da riqueza que ajuda a produzir.

O Censo da População em Situação de Rua 2021 da cidade de São Paulo, que divulgamos recentemente, é retrato de uma história que precisa mudar. Com aumento de 31% em relação a 2019, saltamos para 31.884 pessoas em situação de rua.

Muito se discutiu sobre os números. Eu prefiro debater sobre o que eles de fato revelam: a condição da vida de pessoas. Até porque São Paulo tem história. É pioneira no Censo Pop Rua e já realizou seis desde 2000. Merece um voto de confiança.

Sabemos ser este um problema multifacetado, que abrange mazelas reforçadas durante a pandemia, como desemprego, desestruturação familiar, despejo e uso abusivo de álcool e drogas. Um dos dados mais assustadores do censo é o aumento de 111% do número de famílias nas ruas paulistanas.

A escassez de informações sobre essa população não permite que tenhamos dados comparativos sobre insegurança alimentar. Mas, dada a urgência da fome, sobretudo em período de crise sanitária, a prefeitura ofereceu cerca de 8 milhões de refeições por mês no ano passado, ou 260 mil por dia.

A grande questão que se impõe é: se a porta de entrada que leva as pessoas às ruas é muito mais larga que a de saída, como inverter as posições? Assim como ingressar nessa condição é um processo longo, sair também é. E aqui cabe bem a síntese feita pelo jornalista norte-americano Henry Louis Mencken: "Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, fácil e completamente errada".

O perfil da população em situação de rua nos levou a repensar todo o modelo de abordagem social e as opções de acolhida. Em um esforço intersecretarial liderado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), estamos reestruturando e ampliando os serviços socioassistenciais. É uma iniciativa amparada por anos de debate entre agentes públicos e movimentos sociais sobre o tema.

Entre todas as opções que vamos oferecer, desde novos modelos de acolhida à moradia definitiva, serão 10 mil novas vagas. Uma das iniciativas é a ampliação do atendimento a pessoas em situação de rua em hotéis, com mais de mil novas vagas neste mês de fevereiro.

São Paulo adotará o conceito do "housing first", ou "moradia primeiro", que vira a chave do atendimento. Hoje o morador em situação de rua precisa percorrer um longo caminho, iniciado nos albergues, passando por programas de saúde e de empregabilidade, até que chegue à inscrição em um projeto habitacional. O programa de moradias provisórias tentará acelerar a reconquista da dignidade sob o lastro e a segurança de um teto, atendendo 1.600 pessoas na primeira fase.

É preciso implodir qualquer ideia de criar novos espaços que parecem verdadeiros ginásios, com pessoas aglomeradas sem atendimento individualizado. Centros de acolhida menores, com atendimentos distintos e abordagem humanizada precisam ser um caminho sem volta.

Em um contexto de negacionismos e lacrações, eu escolho o ponto de vista do bispo Casaldáliga: "A indignação deve ser uma indignação esperançada, caso contrário estaremos vomitando bile por toda parte e não teremos nada de anúncio".

TENDÊNCIAS / DEBATES
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