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Glenda Mezarobba e Rogério Sottili

31 de março: ordem do dia

Exercitar a memória, defender a democracia e educar para os direitos humanos

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Glenda Mezarobba

Cientista política, é conselheira do Instituto Vladimir Herzog

Rogério Sottili

Historiador, é diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog; ex-secretário especial de Direitos Humanos da Presidência da República (2015-16, governo Dilma)

Naquele que já se configura, desde o fim da ditadura militar (1964-1985), o ano eleitoral mais desafiador para a democracia brasileira, este último dia de março (31) é incontornável. Não apenas pelo 58° registro que dele faz a história e consequentemente nos impede de esquecer do golpe de Estado, mas, sobretudo, pela sombra que o passado, ao encontrar a terrível realidade enfrentada hoje pelo país, projeta para o futuro.

Ao usurparem o poder, há quase seis décadas, os militares disseminaram o terror nas múltiplas faces assumidas pela repressão —perda de mandato ou cargo público, suspensão de direitos políticos, exílio e prisão, entre outras. Até hoje não se sabe quantas foram as vítimas de tortura. Oficialmente são 434 os mortos e desaparecidos do período. O jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), assassinado nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, é um deles.

Vinte e um anos depois, a ditadura acabou graças à mobilização da sociedade, e o legado de medo e desconfiança foi gradativamente sendo substituído por um novo projeto de país, que pode ser sintetizado no artigo 1° da Constituição de 1988: a construção de um Estado democrático de Direito que tem, entre seus fundamentos, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

A transição produziu canais de participação popular e os mais diversos atores sociais passaram a incidir na elaboração de políticas públicas. Não houve, contudo, reforma significativa de algumas instituições, como as de segurança —tampouco a responsabilização criminal de agentes envolvidos nos crimes da ditadura. Seguem pendentes dois deveres do Estado: o dever de justiça e o dever de transformar as instituições, tornando-as democráticas e "accountable". Obrigações que dizem respeito especialmente ao Poder Judiciário e às Forças Armadas.

Desde 1979, quando foi aprovada a Lei da Anistia, simpatizantes do regime costumam recorrer a ela quando se impõe a necessidade de revisitar o passado. Insistem em um suposto acordo político que teria assegurado a não punição de "ambos os lados". É sabido que foi a partir da construção dessa "garantia" de impunidade que os militares se mostraram dispostos a assumir o compromisso de retirada gradual da política nos anos 1980. Nada mais distante, contudo, do que se evidencia atualmente, com fardados ocupando todo tipo de cargo na administração pública e no primeiro escalão de um governo que não disfarça seu desprezo pela vida, exalta a violência e vê a participação popular limitada ao exercício do voto.

O tempo decorrido desde a primeira eleição presidencial não foi suficiente para a consolidação do Estado de Direito, tampouco para o aprofundamento da democracia no país. Nos últimos anos, as ameaças ao regime crescem em gravidade e extensão. Criado em 2009 para celebrar a vida e o legado do jornalista, o Instituto Vladimir Herzog atua em prol dos valores da democracia, indissociáveis que são da promoção e do respeito aos direitos humanos, e pela liberdade de expressão.

"Amicus curiae" na ADPF n° 320, sobre a Lei da Anistia, e monitorando o cumprimento das 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade, a seis meses das eleições o instituto vê no exercício da memória o imprescindível instrumento para o processo de reconstrução da confiança cívica e restabelecimento da solidariedade social.

Por alicerçar-se em princípios como os da igualdade e universalidade de direitos e deveres, só em uma democracia o Estado, e especialmente seus governantes, podem ser responsabilizados por seus atos —os de ontem e os de hoje.

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