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Renato Pereira

A guerra é a mensagem

Putin convoca antimodernos do mundo a rasgar as regras do jogo

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Renato Pereira

Antropólogo e estrategista político

Estamos em 1941. Alan Turing corre radiante entre as cabanas do centro de inteligência britânico em Bletchley Park, enquanto as bombas nazistas devoram a Inglaterra. Sim, ele acabava de quebrar o código da Enigma, a máquina de mensagens alemã. O seu feito mudaria a história da Segunda Guerra Mundial, e os inventos de Turing se tornariam um marco para a ciência da computação.

Corta para 2022. O desafio não é quebrar o código militar russo, mas decifrar o significado das ações de Vladimir Putin e esclarecer a guerra de comunicação em que estamos envolvidos. Aparentemente, esta é a guerra que a Rússia está perdendo, como destacou a Folha em manchete na segunda-feira (7) ("Bolsonaro e agro determinam aceno do Brasil à Rússia"). Ou, como defende boa parte dos analistas, ao comparar a postura destemida e amigável de Volodimir Zelenski —um mestre das redes sociais— às aparições solenes e ameaçadoras de Putin.

Mas será que os dois falam a mesma língua? O que Zelenski diz soa familiar aos ouvidos ocidentais. Mobiliza sentimentos compartilhados pela maioria de nós. Defender a independência, a democracia, o direito internacional e a vida humana parece natural. Somos filhos do iluminismo, afinal. Podemos discordar sobre qual é a melhor maneira de por em prática estes princípios, podemos ser de esquerda ou de direita, progressistas ou conservadores, crentes ou ateus, mas falamos a mesma língua e nos reconhecemos uns aos outros.

Putin, não. Ele soa estranho, incompreensível. A ponto da sua sanidade mental entrar em pauta. Se suas palavras chocam, as ações horrorizam. Elas são ostensivas: 200 mil homens e farto equipamento militar são reunidos nas bordas da Ucrânia à luz do dia. Mais do que uma demonstração de poder, sinalizam a rejeição veemente ao conceito de autodeterminação. Como russos e ucranianos são um só povo, devem formar uma mesma nação.

A possibilidade de a mobilização militar se transformar em uma invasão contrária tão frontalmente ao senso comum tardou a ser levada a sério pelos serviços de inteligência europeus. Quando acontece, traz uma segunda mensagem: a Rússia não reconhece a soberania como um princípio inviolável da ordem mundial.

Finalmente, há a aniquilação praticada pela operação militar russa, nada gratuita. Demonstra o desprezo por valores caros à visão de mundo ocidental, como os direitos humanos, e evidencia que para romper com a ordem moderna é valido pagar qualquer preço.

Para Putin, a guerra é a mensagem. É um chamado a todos os antimodernos do mundo a rasgar as regras do jogo. Usa a violência para marcar as fronteiras não de projeções geopolíticas, mas de cosmologias. Opõe ordem imperial à democracia. Direito sagrado à razão científica. Supremacia racial à utopia multiétnica.

Entre os invasores da Ucrânia e os do Capitólio, entre o negacionismo de Estado e a vulgata terraplanista, há uma marcante sintonia. Estamos diante da primeira guerra entre modernos e antimodernos de nosso tempo. A ousadia em desafiar militarmente o Ocidente anima a todos aqueles dispostos a questionar resultados eleitorais e a reescrever com sangue a Constituição.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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