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Becky S. Korich

A nova fobia coletiva

Falta um pouco de não saber; sobram certezas

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Becky S. Korich

Advogada, dramaturga e cronista do blog www.quarentenando.com

A vida não dá trégua. São tarefas ininterruptas, uma colada na outra, que parecem não caber nas 24 horas do dia. "É muita demanda", "falta tempo". É o que cansamos de dizer. Mentira: o que falta são pausas, silêncios, vazios. O que falta é a falta.

Falta um pouco de "nadas", tempos e espaços não preenchidos. Falta um dia sem wi-fi, sem redes sociais, sem TikTok —falta ouvir o tique-taque dos minutos. Falta saber no que se ligar e quando se desligar.

Falta coragem para ficar a sós. É a nova fobia coletiva: medo do silêncio e da solidão.

Imagem mostra parte de corpo de uma mulher branca. Ela está segurando um celular da cor âmbar. Ela usa camisa regata azulada.
Uso de celular e o medo de ficar só - Yura Fresh/ Unsplash

Faltam a luz apagada e os olhos cerrados. Falta não ter nada na frente. Falta enxergar no escuro, ouvir palavras não ditas. Falta conseguir se calar. Falta a falta de ruídos, para a gente poder se escutar. Falta a falta de imagens, para a gente poder se enxergar.

Falta o ponto e vírgula, o intervalo do jogo, o semáforo vermelho, o domingo nos domingos. Falta não ter todas as respostas. Falta o hiato. Falta saber esperar.

Já não queremos mais textos longos, filmes longos, conversas profundas. Não aguentamos esperar o próximo episódio. Maratonamos nossos dias em busca de desfechos —o que menos importa.

A infância tem pressa, e o querer aprender passa rápido. Falta uma dose de ingenuidade, sobram coerências; falta um pouco de não saber, sobram certezas. Falta a falta de lógica.

Faltam a curiosidade e o apetite. Falta o espaço vazio para se criar. Falta o "menos", para que a vontade apareça. Falta o mistério, para que o desejo aconteça.

Faltam o cochilo sem intenção, a distração, lacunas para surpresas. Falta a cabeça vazia ao se deitar e, imersos em uma mente que nunca descansa, falta conseguir sonhar. Sonhamos menos dormindo, sonhamos menos acordados.

Faltam pausas nessa orquestra desordenada, sem maestro, sem maestria, onde todos os instrumentos são tocados ao mesmo tempo. Falta saber quando silenciar, porque o silêncio é tão importante quanto tocar as notas certas.

Com tantas metas, perde-se o objetivo. Com tantos caminhos, perde-se a direção. Com tantas coisas à mão, perde-se a expectativa. E o tempo fica curto, os caminhos curtos, sem direito a paradas e paisagens para contemplar.

Falta muita coisa porque sobra muita coisa. Sobram filtros, exposições, imagens estáticas, encontros virtuais, emojis, curtidas. Falta curtir a vida —a real.

Sobram dedos para deslizar em telas, faltam dedos para deslizar em corpos, segurar canetas e livros. Faltam papel, pele, cheiro, calor. Falta intimidade.

Sobram informações, tarefas, estímulos, referências. Só que o excesso de informações desinforma; o excesso de tarefas é improdutivo; o excesso de estímulos aliena; o excesso de referências enlouquece.

Não são com excessos que se preenchem vazios. Mais do que isso: alguns espaços existem justamente para não serem preenchidos.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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