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Gutierres Fernandes Siqueira

Os evangélicos além da política

Segmento é mais complexo do que pautas conservadoras e projetos de poder

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Gutierres Fernandes Siqueira

Jornalista e teólogo, é autor de “Quem Tem Medo dos Evangélicos?” (ed. Mundo Cristão) e coautor de “Autoridade Bíblica e Experiência no Espírito” (Thomas Nelson Brasil)

O Brasil do bicentenário da Independência caminha a passos largos para abraçar o movimento evangélico, abandonando assim o catolicismo romano, que era a tradição religiosa brasileira desde o Brasil Colônia.

Caso nada mude nas tendências atuais, segundo algumas previsões de acadêmicos, o Brasil terá maioria evangélica na década de 2030. O que era antes o maior país católico do mundo se tornará uma das maiores nações protestantes pela vertente do evangelicalismo —que é a versão mais conservadora, popular e barulhenta do protestantismo.

Diante disso, a influência política é crescente, como apontam todas as pesquisas eleitorais recentes. Agora, naturalmente, toda a nossa elite cultural quer entender como os evangélicos agem na arena pública. Nunca se falou tanto do grupo na imprensa. Sou leitor e assinante dos principais jornais do país e vejo todo santo dia alguma reportagem ou artigo opinativo sobre os evangélicos.

Todavia, lamento que o interesse da imprensa pelos evangélicos seja tão monotemático. Esses somente aparecem no caderno de política (e algumas vezes nas páginas policiais). Embora relevante, o lado político (e politiqueiro) da igreja evangélica é o aspecto menos interessante do grupo —e certamente o mais tenebroso. Eu sei que é tarefa da imprensa noticiar o excepcional, mas será que a igreja evangélica só tem pautas político-eleitorais a oferecer? É evidente que ninguém pode ignorar as implicações políticas de um Brasil evangélico, especialmente a imprensa e a academia, mas é um erro resumir os evangélicos meramente ao campo político.

Por exemplo, você sabia que hoje, no Brasil, quem praticamente sustenta a cultura de música erudita são os evangélicos? As igrejas são celeiros da formação de músicos para orquestras sinfônicas. Muitos jovens que nasceram nos piores bairros das grandes cidades brasileiras chegam às orquestras de referência pelo trabalho musical da igreja evangélica. Recentemente, em uma Assembleia de Deus, em Osasco (SP), houve a apresentação impecável da ópera "Serse", de Georg Friedrich Händel (1738), mas nenhum caderno cultural noticiou. Os músicos eruditos treinam nos conservatórios das igrejas músicas de Bach, Villa-Lobos e até MPB —esses músicos não ficam restritos ao gospel. É um lado totalmente desconhecido dessa tradição religiosa.

Outra influência cultural é o crescente hábito de leitura. O evangelicalismo é a religião do livro. O papel da Bíblia na espiritualidade do grupo carrega o interesse da leitura para outros textos em revistas, livros devocionais e obras mais acadêmicas. Quase toda grande igreja tem uma livraria ou biblioteca.

Em muitas cidades brasileiras, a livraria evangélica é a única disponível. Autores teológicos, como o irlandês C. S. Lewis (1898-1963), já aparecem na lista dos mais vendidos. Novas editoras evangélicas nascem regularmente, e grandes grupos editoriais começam a explorar selos religiosos. Por causa das origens literárias do texto bíblico, os evangélicos também enchem as vagas dos cursos de língua e literatura hebraica e grega das universidades federais.

O mundo evangélico é mais complexo do que pautas políticas conservadoras e projetos de poder político-eleitoral. É um mundo de assistência social, laços comunitários intensos, formação intelectual crescente e muita cultura artística.

Convido os jornalistas e a elite cultural brasileira a não resumir os evangélicos às lideranças midiáticas e aos nomes da bancada evangélica. Não esqueçam dos músicos, poetas, livreiros, professores e senhoras de oração que fazem da igreja evangélica um ambiente que ainda respira a graça divina. Nem só de política viverá o evangélico, mas de toda cultura que respira criatividade e espontaneidade.

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