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Ronaldo de Almeida

A fé e o governo Bolsonaro

Em vez de religião na política, devemos falar em religião como política

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Ronaldo de Almeida

Professor do Departamento de Antropologia da Unicamp, é pesquisador do Cebrap e do Laboratório de Antropologia da Religião; coorganizador de “Conservadorismos, Fascismos e Fundamentalismos: Análises Conjunturais” (ed. Unicamp)

Religião na política é tema recorrente há um bom tempo no Brasil. Não significa que estivessem separadas, como sugere o senso comum de que agora —com os evangélicos— as duas se contaminaram.

A boa pergunta é como estão imbricadas e quais as implicações. Cito aqui alguns arranjos religiosos no governo Jair Bolsonaro (PL) organizados em torno de pautas, interesses econômicos e quadros burocráticos.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) e a primeira-dama, Michele, recebem bênção do pastor Josué Valandro em culto na Igreja Atitude, no Rio de Janeiro - Fernando Frazão - 26.mai.19/Agência Brasil

No Ministério das Comunicações estão os principais interesses econômicos de carismáticos católicos e (neo)pentecostais. Nas Relações Exteriores, uma coalizão sionista judaico-cristã reivindicou a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém. Na Justiça orbita um campo jurídico-confessional-acadêmico de protestantes reformados e católicos do Opus Dei, cuja maior expressão é a família Gandra Martins.

A Cidadania foi comandada pelo luterano Onyx Lorenzoni, com apoio da neopentecostal Sara Nossa Terra. Com o domínio do centrão, o ministério passou aos Republicanos, partido ligado à Igreja Universal.

A Educação foi conduzida por um pastor presbiteriano, e uma pastora batista chefiou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, com destaque para o catolicismo Opus Dei na Secretaria Nacional da Família.

No Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), houve a intervenção de católicos monarquistas, enquanto as declarações racistas do presidente da Fundação Cultural Palmares mostraram que as religiões afro-brasileiras não compõem o governo.

Em suma, a atual gestão adensou a sinergia entre religiosos conservadores, compatibilizou pautas, equacionou interesses econômicos e, sobretudo, consolidou uma face política: Messias Bolsonaro.

Porém, se na gestão há essa diversidade religiosa, no eleitorado a força centra-se nos crentes. Conforme o Agregador de Pesquisas Eleitorais por Religião do Cebrap, a maioria dos evangélicos, a grosso modo, é pró-Bolsonaro, enquanto as outras religiões e não religiosos votam mais em Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Evangélica faz oração em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília - Pedro Ladeira - 5.abr.20/Folhapress

O teólogo Ronilso Pacheco identificou semelhanças do nacionalismo cristão norte-americano com o Brasil atual. Anos atrás, os "white evangelicals" distribuíam-se entre democratas e republicanos de maneira não tão desequilibrada como hoje, quando 70% se declaram pró-republicanos motivados por pautas que dividem o eleitorado, como aborto e armamento. Ato contínuo e potencializado, Donald Trump obteve 81% dos votos dos "white evangelicals", em 2016, e 84%, em 2020.

O bolsonarista que assassinou um petista em Foz do Iguaçu (PR), no início da campanha, identificava-se em seu Facebook como "conservador" e "cristão". Este último termo, à semelhança do nacionalismo cristão, não se referia às crenças nem à comunidade religiosa. Tratava-se, antes, de uma identidade política.

Em vez de religião na política, devemos falar em religião como política. Mais do que a forma religiosa da política, que separa forma e conteúdo, ou mais do que religião entrando na política, como se nunca tivesse estado nela, fazer religião tem sido fazer política.

Um exemplo é o contorcionismo hermenêutico de pastores ao interpretar o chicote usado por Cristo contra os vendilhões do templo como equivalente a uma arma. Legitima-se as armas e camufla-se o principal —o comércio da fé. A normalização das armas entre os evangélicos é efeito do bolsonarismo e tem o tempo do seu mandato.

Como consequência, as transversalidades que alinham a direita religiosa produzem clivagens em cada religião com a produção de inimigos internos: os falsos cristãos, os evangélicos progressistas, os judeus esquerdistas, os católicos comunistas (da CNBB ao papa Francisco).

O pastor Renê Arian benze armas em igreja de Curitiba - @delegadotitobarichello no Instagram - Reprodução

Assim como famílias e amizades foram tensionadas pela extrema direita, produzindo rompimentos interpessoais, o mesmo se dá nas comunidades religiosas —inclusive nas kardecistas, daimistas e de matriz africana, mesmo sendo estas estigmatizadas pelo governo.

Em síntese, o alinhamento da direita religiosa é acompanhado por antagonismos intra-religiões. A religião do bolsonarismo une dividindo "os irmãos".

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