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Betty Milan

O lapso da derrota

Ato falho de Bolsonaro em debate na TV expôs seu medo de perder a eleição

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Betty Milan

Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

TV Globo. Último ato do debate das eleições presidenciais de 2022. A cada um dos candidatos só cabia fazer as suas considerações finais. Um minuto e meio. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi sorteado para ser o primeiro. Agradeceu a Deus pela oportunidade de falar, ao público por ser ouvido e à Globo pela transmissão. Prometeu restabelecer a harmonia, apostar na educação, na cultura, no emprego e no salário mínimo. Pediu ao eleitor que não se abstivesse, garantiu que seria possível reconstruir o país se ganhasse, pediu que escolhêssemos o número 13.

Ato contínuo, William Bonner passou a palavra para o outro candidato, que primeiro evocou a facada, agradecendo a Deus por ter lhe dado uma "segunda vida" em Juiz de Fora (MG) e a missão de comandar o país "num dos momentos mais difíceis da história da humanidade".

Já aí, antes de dar um tiro no pé, ele derrapou. O drama atual não pode ser equiparado ao da gripe espanhola —a pandemia de 1918, que infectou um quarto da população mundial e causou no mínimo três vezes mais mortes. Isso apenas para mencionar a história recente, já que, na Idade Média, a peste negra vitimou pelo menos 30% dos europeus.

O tiro no pé foi quando, depois da derrapada, o candidato se endereçou a Deus e, como se fosse um personagem, disse: "Se essa for a sua vontade, estarei pronto para cumprir com mais um mandato de deputado federal". O ato falho não passou despercebido, mas, como o candidato não estava fora de si, foi logo corrigido: "Presidente da República".

Bolsonaro não perdeu o prumo por ser tão indiferente ao que diz quanto à história da humanidade, que mudou significativamente graças à ciência. Na Idade Média, os homens não tinham a menor ideia do que causava a peste e, durante a gripe espanhola, os cientistas não conseguiram isolar o vírus. Na pandemia de Covid-19, levaram um mês para fazer isso, e as vacinas começaram a ser produzidas. Na batalha entre os humanos e os patógenos, nunca fomos tão poderosos. As epidemias hoje são desafios controláveis porque dispomos da vacinação.

O ato falho do então candidato à reeleição talvez tenha a ver com a negação da pandemia e a desqualificação da vacina, ou seja, com a consciência das falhas enquanto presidente. Mas o lapso não pode ser explicado só através da consciência.

Um ano depois de publicar "A Interpretação dos Sonhos", em 1900, Freud escreveu "A Psicopatologia da Vida Cotidiana" para mostrar que, além de se manifestar no sonho, o inconsciente se manifesta nos erros da linguagem (fala, escrita, leitura), da memória (esquecimentos) e do comportamento (tropeçar, cair, quebrar etc.). O erro, como o sonho, é a expressão de um desejo.

E que desejo se manifestou no lapso histórico do candidato? Por que ele se disse pronto para cumprir um mandato de deputado federal, não de presidente? A chave da explicação está na sua história política.

Bolsonaro foi deputado federal por sete mandatos. Candidatou-se e venceu por sete vezes. Da possibilidade de conquistar a deputação, ele estava certo; enquanto isso, a de se reeleger para a Presidência da República era incerta. O lapso é a expressão do desejo de ser novamente vitorioso e do medo de ser derrotado.

Não fosse o medo, Bolsonaro não teria distribuído dinheiro a torto e a direto para comprar eleitores e não teria facilitado o acesso às armas para propiciar uma insurreição caso fosse derrotado e não conseguisse o apoio das Forças Armadas.

Bolsonaro só não voltará se as metas de Lula forem alcançadas, e todos os esforços são necessários para que isso aconteça. Precisamos provar que foi uma vitória mais do que merecida e a sabotagem não vencerá.

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