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Lucas Figueiredo

Encontro marcado

Lula precisa rever pacto do poder civil com as Forças Armadas

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Lucas Figueiredo

Jornalista e escritor, atuou como pesquisador da Comissão Nacional da Verdade; é autor, entre outros, de “Lugar Nenhum: Militares e Civis na Ocultação dos Documentos da Ditadura” (Companhia das Letras)

Em 2003, quando Lula começava a experimentar as dores e delícias de ocupar a cadeira presidencial, fui a Brasília para entrevistar um ministro do chamado "núcleo duro" do governo. Na época, eu terminava a pesquisa do meu livro sobre a história do serviço secreto brasileiro e queria entender por que o presidente, uma vez empossado, evitava fazer mudanças no desenho institucional das Forças Armadas.

Lula optara, por exemplo, por nomear como comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica os oficiais generais mais antigos nas respectivas carreiras, um critério (não obrigatório) muito apreciado na caserna, mas nem sempre conveniente. E por um motivo óbvio: num país com crônica fragilidade institucional como o Brasil, o mandatário precisa ter certeza de que conta com a lealdade irrestrita de quem comanda a tropa.

No caso do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) —a antiga Casa Militar— Lula foi ainda mais conservador. Nomeou para sua chefia um general da ativa e, de forma rara em democracias sólidas, preservou sob o guarda-chuva do órgão funções tão amplas quanto sensíveis: cuidar da segurança do presidente e de sua família, articular operações de segurança pública em todo território nacional, ditar a política "antidrogas" e comandar o serviço secreto, a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), um órgão civil.

Na entrevista "off the records" com o ministro, questionei por que o governo não havia feito alterações na Abin. Sob Lula, 25 dos 26 principais postos de comando do serviço secreto, incluindo a direção-geral, continuaram nas mãos de agentes formados no temido Serviço Nacional de Informações (SNI).

Por que Lula parecia tão assombrado em bulir com as Forças Armadas? A resposta do meu interlocutor foi a seguinte: o PT acreditava que seu governo seria alvo de pressões colossais por parte do establishment, com risco de instabilidade econômica, social e política. Então, para garantir ao menos a neutralidade da caserna, optara por uma política continuísta na esfera militar.

Lembro-me de ter dito ao ministro que, pela minha experiência com fontes da área militar, tudo indicava que o plano não funcionaria. Por um motivo: diferentemente de seus antecessores, Lula sempre estivera no centro do alvo das Forças Armadas. Não era por ter sido eleito com quase 53 milhões de votos que aquele ex-dirigente sindical de esquerda deixara de personificar o "inimigo interno" a ser derrotado.

Até o fim de seu segundo mandato, Lula continuou evitando medidas que pudessem melindrar as Forças Armadas. Sob o governo petista, a Advocacia-Geral da União recorreu (duas vezes!) contra uma sentença da Justiça Federal que ordenava a União a abrir os arquivos secretos das campanhas militares contra a Guerrilha do Araguaia (1972-1975). Anos depois, já na gestão de Dilma Rousseff, a Comissão Nacional da Verdade comprovou que os arquivos secretos existiam, mas, diante da inércia do Palácio do Planalto, não conseguiu fazer valer o mandado legal que lhe facultava acesso a eles.

Apesar de sucessivamente renovado, o pacto de boa convivência com os militares proposto por Tancredo Neves na instauração da Nova República nunca gerou estabilidade plena aos presidentes civis. Nos últimos anos, ele implodiu.

Ou o poder civil enquadra o poder militar, colocando-o de fato sob sua subordinação, como manda a Constituição, ou mais cedo ou mais tarde será engolido por ele.

Como presidente, comandante em chefe das Forças Armadas e herdeiro dos apocalípticos anos Bolsonaro, Lula tem cinco tarefas urgentes a cumprir: 1 - enfrentar com rigor a insubordinação nas fileiras militares; 2 - retirar da esfera militar o controle da Abin; 3 - retirar do GSI atribuições afeitas à área civil, retornando ao tradicional formato da Casa Militar; 4 - em relação às graves violações dos direitos humanos ocorridos na ditadura civil-militar, exigir das Forças Armadas submissão às decisões do Executivo, do Legislativo e do Judiciário referentes ao direito à memória e à verdade; 5 - reformular a doutrina castrense de forma a eliminar a figura do "inimigo interno".

Dar um fim a essa história talvez seja o maior legado que Lula poderá deixar ao Brasil.

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