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Renato Janine Ribeiro

Queriam eles uma junta militar?

Foi um fracasso rotundo, mas pode ser o ensaio geral de um golpe futuro

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Renato Janine Ribeiro

Professor titular de ética e filosofia política da USP, é presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015); escreve este artigo a título pessoal

Usemos do raciocínio. A turba que invadiu o Planalto —uma mistura de perfeitos imbecis, que geraram nas redes provas contra si mesmo, e de desqualificados que roubaram, destruíram e defecaram— não passava de carne para canhão.

Pretendiam eles tomar o poder? Poupem-me! Não, eles foram financiados para criar uma convulsão social. Seus mandantes, que não apareceram nas câmeras mas pagaram ônibus, lanches e banheiros químicos, só podiam querer um pretexto para uma junta militar.

Imaginem se alguns dos idiotas úteis tivessem morrido, ou se além deles também morresse gente respeitosa da lei e da democracia. Haveria um álibi magnífico para se alegar que o governo não conseguia manter a ordem e que então os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (os atuais ou outros, isso não importa) deveriam tomar o poder.

Com essa desculpa, eles implantariam um bolsonarismo sem Jair Bolsonaro. Não chamariam o foragido de sua mansão na Flórida para repô-lo na Presidência. Pode até ser que, para inglês ver, o criticassem. Brandamente. Mas seria instituído um regime de exceção, fechando o Congresso, o Supremo e, obviamente, prendendo Lula e vários de seus ministros.

Não tenho nenhuma informação a respeito. Mas às vezes a lógica ajuda —e muito. Obviamente, a multidão na Esplanada não teria a menor competência para dirigir o país. E nenhuma liderança com dois neurônios parecia estar por lá. Era um caso típico de tirar as castanhas do fogo com a mão alheia. Os alguns milhares de terroristas —que cometeram crimes e devem ser punidos por isso— eram meros instrumentos de gente mais esperta, escondida.

Mortes eram necessárias para o cenário que aqui descrevo. Não houve, felizmente, mas bastava um dos terroristas atirar em alguém (ameaçaram matar a jornalista Teresa Cruvinel e torturaram um jornalista de "O Tempo", de Belo Horizonte) ou um deles ter sido alvejado, que o roteiro se produziria. Não faltariam rábulas para afirmar que em momentos de exceção se justificam medidas de exceção para, a exemplo da ditadura de 1964, rabiscar mais algum Ato In(con)stitucional.

Escapamos disso por pouco. A reação rápida do presidente Lula, intervindo na segurança pública do Distrito Federal e, mais ainda, do ministro Alexandre de Moraes, afastando o governador local por suspeita de "omissão dolosa", abortaram o projeto. Manteve-se a democracia, ainda que vulnerável e frágil. No fim da tarde, a PM do Distrito Federal, antes leniente com os criminosos, retirou-os das sedes dos três Poderes. Mas foi preciso a determinação severa de Moraes para serem fichados os terroristas.

Tudo isso mostra que os riscos continuam. Foi um fracasso rotundo, mas pode ter sido apenas um ensaio geral para o próximo golpe. O golpe de 1964 foi preparado em várias tentativas, começando em 1954, com a morte de Getúlio. No ano seguinte, houve eleições, como as houve em 2022, mas ainda assim o presidente em exercício, talvez o mais infame de nossa história, Café Filho, tentou impedir o eleito, Juscelino Kubitschek, de assumir a Presidência (anos mais tarde, o golpista Carlos Lacerda daria a Café

Filho uma sinecura na Guanabara). Seguiram-se as rebeliões de Jacareacanga e Aragarças (cujo culpado, Haroldo Veloso, dá nome a uma rua de bairro chique em São Paulo) e a Operação Mosquito, que pretendia assassinar João Goulart e quem mais estivesse no avião que o levava para a posse em Brasília.

Os crimes de domingo (8) podem ser o ensaio geral de um golpe futuro. Ou quebramos o ovo da serpente ou ele acabará eclodindo.

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