No dia 2 de outubro de 2022, primeiro turno das eleições, tive que votar com colete à prova de balas. A decisão partiu da equipe de segurança que me escoltou durante a campanha eleitoral e estava bastante preocupada com a quantidade e o teor das ameaças de morte que sofri.
Ao todo, durante a campanha, tomamos conhecimento de dez ameaças –uma a cada quatro dias– que chegaram por emails, carta, site e telefone. Todas assinadas com símbolos e elementos diretamente relacionados ao nazismo.
Eu havia planejado que na campanha eleitoral não falaria das violências presentes no cotidiano de nós, travestis e transexuais. Seria uma campanha propositiva, cuja centralidade do debate estaria nas pautas da educação e do meio ambiente.
Eu queria, na esfera discursiva, tirar a transexualidade do campo ao qual ela sempre esteve relacionada: violência, marginalidade e preconceito odioso. O planejamento fracassou, pois durante o contexto eleitoral o que se destacou não foram minhas propostas sobre educação ou crise climática, mas sim a violência que gritava sobre mim e sobre outras candidaturas trans.
Questiono-me quando será possível discutir identidades, perspectivas e vivências de travestis e transexuais sem ter que obrigatoriamente falar de violência.
É uma tarefa difícil, pois somos o país com maior número de assassinatos de pessoas trans no mundo pelo 14° ano consecutivo, de acordo com o dossiê divulgado nesta semana pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Nesse levantamento, há números assustadores: 85% dos assassinatos ocorridos com requintes de crueldade, com uso excessivo da violência; 81% das vítimas tinham a idade entre 15 a 35 anos.
Nas páginas de jornais, portais de notícias e nos meios televisivos a lógica discursiva, de modo geral, é a mesma: retratação do binômio transexualidade e violência. Quando não aparecemos relacionadas à violência física, outras violências entram em cena.
Quem não se lembra do episódio de 2008, envolvendo o jogador de futebol Ronaldo Fenômeno e três travestis em um motel no Rio de Janeiro? Na época, os veículos midiáticos referiram-se às travestis com uma linguagem agressiva, utilizando pronomes errados e reforçando o estigma de que travestis são enganadoras, dissimuladas e golpistas.
Em contrapartida, projetaram no jogador a imagem que povoa o imaginário preconceituoso de que a pessoa que se envolve sexualmente com uma travesti está sendo enganado.
De maneira absurda, o Fantástico, em pleno horário nobre, cedeu espaço para que o jogador justificasse o porquê de se envolver sexualmente com travestis, como se transar com transexuais fosse um crime que exigisse retratação pública. Prova disso é que em entrevista recente, Pedro Bial questionou os motivos de o jogador ter se envolvido com travestis, e Ronaldo atribuiu o fato ao uso de álcool.
Mesmo diante desse cenário nacional de transfobia, violências e estigmas, o movimento de pessoas trans tem se fortalecido e conseguido avanços.
Hoje, 29 de janeiro, celebra-se o Dia da Visibilidade Trans, pois nesta data em 2004 ativistas trans foram ao Congresso Nacional manifestar em favor da campanha "Travesti e Respeito".
Dezenove anos após esse marco, muitas pessoas trans se destacaram positivamente nos campos da cultura, da intelectualidade e da política, onde teremos, pela primeira vez na história, duas travestis deputadas federais.
Essas vitórias fortalecem um novo e importante paradigma social, o qual reconhece que sim, nós, travestis e transexuais, também podemos ser exemplo, também podemos ser admiradas, desejadas, ocupar espaços de decisão e podemos, inclusive, ser orgulho entre nossas famílias.
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