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Programa no DF reduz uso de drogas e automutilação entre detentas trans

Iniciativa de profissionais do posto de saúde da unidade oferece consultas semanais, atendimento psicológico e orientação sobre terapia hormonal

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Jéssica Moura
São Paulo

Um programa de saúde voltado a pessoas transexuais e transgênero reduziu o uso de remédios controlados e casos de automutilação entre as detentas da Penitenciária Feminina do Distrito Federal, conhecida como Colmeia. O presídio fica na cidade do Gama, a cerca de 30 km de Brasília.

O projeto, uma iniciativa de profissionais do posto de saúde que funciona dentro da unidade, oferece consultas semanais, atendimento psicológico e orientação sobre terapia hormonal.

Entrada da Penitenciária Feminina do DF, conhecida como Colmeia; programa desenvolvido no local reduz uso de drogas e automutilação entre detentas trans - Reprodução/GloboNews

A ação começou em março de 2021, depois que o ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), deu autorização para que mulheres trans instaladas em presídios masculinos fossem transferidas para femininos.

Desde a transferência para o presídio feminino e o início do programa, o uso de psicotrópicos entre as 55 detentas trans caiu 25%. De janeiro até outubro deste ano, não houve registros de tentativas de suicídio e casos de mutilação —entre março e dezembro do ano passado foram pelo menos 20 registros de automutilação, segundo a equipe de saúde.

"A qualquer sinal de angústia, lidamos com a questão para que o sintoma não se torne crônico", explica Aline Xavier, psicóloga que atua no programa.

Xavier ajudou a estabelecer estratégias para reduzir quadros de ansiedade e depressão das detentas, que, segundo ela, são agravados pelo preconceito, abandono e tensão no ambiente prisional. A necessidade permanente de remédios é monitorada, e, quando possível, suspensa —a detenta, então, segue o tratamento com psicoterapia.

Além das consultas de psicologia, clínica geral e odontologia que acontecem toda semana, as pacientes presas na Colmeia têm acesso a testes rápidos, exames laboratoriais e práticas integrativas. "Fazemos diagnósticos de HIV e sífilis, que não eram acompanhados quando estavam no presídio masculino", relata a médica de família Isabela Rocha.

A médica conta que uma das principais demandas na Colmeia é por terapia hormonal. A UBS prisional encaminha detentas que querem seguir com essa terapia para a fila do SUS —quando o pedido é aceito, a paciente recebe o medicamento em consulta em posto de saúde fora da prisão.

Iniciativas semelhantes à do Distrito Federal ocorrem apenas em outros três estados. No Pará, o projeto Casulo encaminha pessoas do sistema prisional ao SUS (Sistema Único de Saúde) para cirurgia de redesignação sexual (retirada dos testículos e construção de uma vagina). O Transodara, no Amazonas, leva detentos trans de presídios do estado para uma policlínica, em que os pacientes recebem atendimento de psicólogos, ginecologistas, endocrinologistas e assistentes sociais. Em Rondônia, a equipe multidisciplinar também trata das pacientes trans em um projeto nos mesmos moldes.

A oferta de saúde é deficitária de forma geral em todo o sistema prisional, afirma Elaine Pimentel, socióloga e professora da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), que estuda violência nas prisões.

Nesse cenário, não há oferta sistemática de endocrinologia para acompanhar os cuidados com a transição dessas pessoas, diz Pimentel. "No máximo, há um clínico e um psiquiatra."

A oferta de procedimentos cirúrgicos, como próteses mamárias, também deveriam ser garantidos, diz o endocrinologista Magnus Dias, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia de São Paulo (SBEM-SP).

"Sem isso, acabam injetando [de forma ilegal] silicone industrial, que é um problema gravíssimo de saúde. Outras coisas simples, como receita usando o nome social, também são ignoradas. Isso é um direito que interfere na saúde mental."

A presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), Keila Simpson, diz que, no cárcere, cuidados físicos e psíquicos para pessoas trans estão prejudicados. "Falar de saúde dentro do presídio é quase um privilégio. As meninas relatam dificuldades de fazer consultas médicas, de obter materiais de prevenção e terapia hormonal nos presídios."

O Depen (Departamento Penitenciário Nacional) não tem registro do número de pessoas trans nas cadeias do país. Um levantamento feito pela Folha junto às secretarias de administração penitenciária, de justiça estaduais e de saúde indica que existem pelo menos 1.905 transgêneros no sistema prisional brasileiro. Amapá, Bahia, Goiás, Rondônia e Rio Grande do Norte não informaram dados da população trans no cárcere.

"Sem acompanhamento, as pessoas não se reconhecem mais no seu gênero construído. Sem ele, uma mulher trans vai sair da cadeia masculinizada", explica o psicólogo Marco Aurélio Prado, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que atua em presídios no estado.

Em julho de 2022, a penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, em São Joaquim de Bicas (MG), que recebe apenas detentos LGBTQIA+, chegou a ser parcialmente interditada em função do elevado número de suicídios entre as detentas. Em um ano e meio, foram 13 mortes e 60 tentativas de suicídio.

Mesmo a política de cadeias exclusivas para essa comunidade é insuficiente para assegurar a saúde das internas, avalia a defensora pública Andreza Menezes, que atua no Paraná. "Não têm o atendimento regular, que precisaria ser semanal", afirma.

A falta de acesso à saúde pelas pessoas trans nos presídios viola a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. A norma de 2014 específica que os detentos têm direito ao cuidado integral pelo SUS.

A resolução nº 348/2020 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) assegura à população trans no cárcere o tratamento hormonal e acompanhamento específico para infecções e doenças crônicas, assim como atendimento psicológico e psiquiátrico. A Defensoria Pública da União fiscaliza as penitenciárias federais.

Para o defensor Emanuel Marques, "desprezar as condições pessoais e necessidades específicas dessa população caracteriza tortura". Ele coordena o grupo de trabalho voltado à população LGBT e admite que o órgão não tem profissionais suficientes para esse monitoramento. "Em ambas as esferas, federal e estadual, falta estrutura para que possamos implementar efetivamente esses direitos."

Procurado, o Depen afirma que possui uma coordenação que busca implementar políticas de atenção a demandas de detentos e grupos específicos, as quais abrangem os internos LGBTs. O departamento disse ainda que uma nota técnica orienta o tratamento a esses presos, e que os estados possuem autonomia federativa.

O Depen realiza também um levantamento em cadeias exclusivas para LGBTs com a intenção de identificar demandas dessa população, evitar violações de direitos e garantir a expressão de gênero.

A advogada Natália Sanzovo, autora do livro "O Lugar das Trans na Prisão", (ed. D’Plácido; 184 págs.) defende o mapeamento desse grupo para embasar políticas públicas. "Mulheres trans estão submetidas a mais violência pela transfobia. Reconhecer essa população e entender suas necessidades é crucial."

Outro gargalo dessa população no sistema prisional se refere à capacitação. "Seria necessário que a equipe de saúde que trabalha nesses espaços fosse treinada pelo menos para conseguir realizar os exames e avaliações de modificações corporais necessárias", afirma Magnus Dias.

Esta reportagem foi produzida como parte do 7º Programa de Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha de S.Paulo, que teve apoio do Instituto Serrapilheira, do Laboratório Roche e da Sociedade Beneficente Albert Einstein.

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