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José Goldemberg

Vivemos uma crise de energia elétrica?

Melhorar atendimento já resolveria muita coisa

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José Goldemberg

Doutor em física e professor emérito da USP, é presidente do Conselho de Sustentabilidade da FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo); ex-presidente da Eletropaulo (1982-85)

Os últimos meses foram marcados por vários problemas envolvendo o setor elétrico. Preços altos, apagões frequentes e prolongados em grandes centros urbanos, morosidade no reestabelecimento etc.

Alguns dizem que eles foram causados pela privatização da Eletrobras e de outras diversas concessionárias de distribuição de eletricidade, como a italiana Enel São Paulo. Para outros, a culpa é da inoperância da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), responsável pela regulação do setor, ou da falta de agilidade dos órgãos de proteção do consumidor, como o Procon, para cobrar o ressarcimento de perdas econômicas —caso de estoques de supermercados, prejuízos com dias parados ou custos extras com gerador, por exemplo. Há quem ainda aponte para as variações climáticas agravadas nos últimos anos pelo aquecimento global —e, então, não teria mesmo muito o que fazer.

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Apagão na avenida São João, no centro de São Paulo, em um dos dias em que a Enel falhou na distribuição de energia - Otavio Valle - 21.mar.24/Folhapress - Folhapress

Esse cenário confuso dificulta a tomada de decisão para lidar com o problema. Mas há alguns fatos incontestáveis que podem ser utilizados para encontrar soluções.

O primeiro deles é que o Brasil produz eletricidade suficiente para atender todas as necessidades da população. Boa parte dessa produção é privada; aliás, sem que isso seja um problema para o fornecimento.

O segundo é que nós temos um excelente Sistema Integrado Nacional (SIN) de transmissão de longa distância que cobre praticamente todo o território nacional.

Em outras palavras, o setor não vive uma crise, embora os episódios recentes pareçam expressar.

Mas é um fato, também, que a eletricidade dos consumidores comerciais e residenciais é cara. Para se ter uma ideia, esse custo é maior do que em 34 países desenvolvidos, o que se explica pelos subsídios diretos (cerca de R$ 40 bilhões somente em 2023). Eles incluem a tarifa social para a população de baixa renda e para energias incentivadas —como as renováveis e termelétricas em regiões não conectadas ao SIN—, as perdas técnicas incluídas nas tarifas das distribuidoras, impostos e o valor da própria energia e da sua transmissão.

O resultado é que, do total arrecadado pelas empresas que fornecem eletricidade, apenas 20% ficam com elas de fato, tanto para cobrir as operações das redes de distribuição como em forma de lucro.
Essa situação tem se agravado por causa dos jabutis incluídos em diversas leis aprovadas no Congresso Nacional, privilegiando interesses dos lobbies que o Ministério de Minas e Energia (MME) não tem se esforçado tanto em barrar. Essa "fúria legislativa" resulta em alguns absurdos, como a instalação de usinas renováveis (eólicas e fotovoltaicas) sem nenhuma preocupação com a conexão delas com as linhas de transmissão do SIN ou de usinas térmicas a gás em locais onde não há esse combustível; ou, ainda, a renovação dos contratos de fornecimento emergencial com as termelétricas a carvão mineral.

É certo que distribuidoras bem geridas, sejam elas estatais ou privadas, podem enfrentar acidentes causados por temporais de forma muito melhor do que outras —como era a Light, em São Paulo, empresa privada com boa reputação pelo seu atendimento residencial e que foi substituída pela Eletropaulo (estatal), depois pela AES (privada) e, agora, pela atual Enel, que tem recebido muitas reclamações.

O problema, na verdade, está na tendência das empresas privadas em terceirizar serviços técnicos de manutenção sem a devida supervisão, como se fossem operações comuns. É então que a passividade do MME e da Aneel fica evidente, pois só depois dos graves problemas ocorridos em São Paulo no final de 2023, e há algumas semanas na região central da principal metrópole do país, que eles resolveram agir com severidade.

Ainda assim, estatizar o sistema de distribuição, como alguns têm defendido, não resolveria o problema.

Talvez até o agrave, pela falta de recursos públicos para investimentos em infraestrutura. Indispensável mesmo é fazer as distribuidoras entenderem, sob pena de sérias penalidades e até da perda da concessão, que os consumidores residenciais e o setor do comércio (sobretudo pequenos e médios estabelecimentos) precisam ser mais bem atendidos —e que, no caso de acidentes ou imprevistos inevitáveis, como temporais, por exemplo, que eles sejam ressarcidos pelas perdas econômicas rapidamente, sem uma longa tramitação na esfera judicial.

Isso já resolveria muita coisa.

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