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Monica Herz e Giancarlo Summa

Uma motosserra contra a América do Sul

Assim como no tango, será preciso que Lula e Milei queiram dançar juntos

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Monica Herz

Professora titular de relações internacionais na PUC-Rio

Giancarlo Summa

Pesquisador no Ehess (École des Hautes Études en Sciences Sociales) em Paris, foi diretor de comunicação da ONU no Brasil e no México

A eleição de Javier Milei à Presidência da Argentina pode acabar destroçando a golpes de motosserra —o símbolo de sua campanha— as aspirações do governo Lula para a integração da América do Sul. Segunda maior economia da região, a Argentina não é somente o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, após China e EUA, mas também, há mais de 40 anos, o interlocutor indispensável para qualquer voo mais alto na arena internacional.

Em 1980, os governos militares dos dois países assinaram o Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento e a Aplicação dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear —um mecanismo de confiança mútua que foi fundamental para barrar a corrida armamentista nuclear e é considerado um modelo internacional. Com a volta da democracia, os dois primeiros presidentes civis, José Sarney e Raúl Alfonsín, assinaram em 1985 a Declaração de Foz de Iguaçu, a "pedra angular" do Mercosul, criado em 1991. Em 2005, uma frente liderada por Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner rejeitou a proposta dos EUA de criar uma Área de Livre Comércio das Américas, que teria atado a região, econômica e politicamente, ao hemisfério norte. Logo depois, os dois países foram os protagonistas da criação da Unasul (União das Nações Sul-Americanas).

Presidente eleito da Argentina, o então candidato Javier Milei ergue motosserra entregue por apoiadores durante carreata em Buenos Aires - Cristina Sille - 25.set.2023/Reuters - REUTERS

Os dez últimos anos marcaram um forte retrocesso no processo de integração. No Brasil, o governo de Dilma Rousseff foi bem menos ambicioso na política internacional e, a partir de 2013, foi administrando uma crise detrás da outra. Após o golpe parlamentar e o anódino interregno de Michel Temer, o governo de Jair Bolsonaro se distinguiu por uma política externa ideológica e inepta, que dinamitou sistematicamente a projeção internacional do país e as instituições existentes.

Na Argentina, em 2015, foi eleito Mauricio Macri, um neoliberal de direita que se empenhou em romper com o legado de Néstor e Cristina Kirchner, inclusive na política exterior. Quando, em 2019, chegou à Casa Rosada o peronista Alberto Fernández, considerado um inimigo político por Bolsonaro, as relações entre os dois países entraram num patamar baixíssimo. No mesmo ano, Bolsonaro retirou o Brasil da Unasul, selando o fim da organização. Foram definhando a presença e a voz do país na ONU e nas demais instituições e foros multilaterais, incluindo o Brics.

A volta de Lula marcou o regresso do Brasil na cena internacional. Mas, nos primeiros 11 meses, poucos resultados concretos foram alcançados na região. O Mercosul continua paralisado, a Unasul não foi reconstruída e o peso do Brasil no Brics diminuiu de forma significativa.

É difícil imaginar o que o Brasil possa fazer agora, tendo Milei como interlocutor. O presidente eleito e sua vice, Victoria Villarruel, rezam pela cartilha da direita radical global e defendem posições que se chocam frontalmente com as do governo Lula. O discurso de Milei sobre política internacional é superficial e marginal às suas propostas vitoriosas (os ataques à casta política e as promessas de resolver a crise econômica), mas reflete a visão de um mundo dividido entre amigos e inimigos (rotulados como comunistas ou "zurdos", esquerdistas), com desprezo pelas instituições internacionais, como o Mercosul, e uma visão de soberania pouco flexível nas questões ligadas às mudanças climáticas ou à Agenda 2030 da ONU.

Divergente à posição de equidistância entre EUA e China dos últimos anos, o novo presidente argentino propõe uma aliança estratégica com os norte-americanos, tornando impossível uma política regional de não alinhamento ativo para obter as maiores vantagens diplomáticas e econômicas possíveis sem tomar partido na disputa das grandes potências.

A geografia e o entrelaçamento de suas economias obrigarão Argentina e Brasil a seguir convivendo de forma próxima. Lula já estendeu a mão ao novo vizinho. "Eu não tenho que gostar do presidente", disse num evento de formatura de diplomatas no Itamaraty. "Nós temos que nos sentar na mesa, cada um defendendo os seus interesses". Mas, assim como no tango, é preciso que ambos queiram dançar.

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