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Fayda Belo

A violência espiritual precisa entrar no debate

Direito à liberdade de crença não pode ser interpretado como direito de agredir

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Fayda Belo

Advogada especialista em crimes de gênero

É bem verdade que a Constituição homenageou os brasileiros com o direito fundamental à liberdade de crença, bem como as instituições religiosas com o direito irremovível de inviolabilidade aos seus locais de culto, mas isso não pode ser um obstáculo para o debate urgente e necessário acerca da violência espiritual contra a mulher, ou seja, o uso da fé para omitir violências e perpetuar opressões de gênero.


A universidade Mackenzie apurou que mais de 40% das vítimas de violência doméstica se autodeclararam evangélicas e, por outro lado, o Senado fez um mapa da violência que mostra que mais de 45% das mulheres vítimas de violência preferem contar o ocorrido aos seus líderes religiosos do que às autoridades, acendendo um alerta sobre o papel que as instituições religiosas têm desempenhado na omissão ou perpetuação da violência contra a mulher.

Nesse aspecto, tanto o Congresso ao legislar quanto o presidente da República ao sancionar sem vetos a lei 14.786/23, que instituiu o protocolo "não é não" para prevenir o constrangimento, a violência contra a mulher e a proteção à vítima, perderam a oportunidade de trazer as instituições religiosas para o centro do debate sobre o enfrentamento da violência contra a mulher.

Pelo parágrafo único do art. 2° da lei, essas instituições estão excluídas desse protocolo, como se não tivessem obrigação, como qualquer setor da sociedade, de colaborar no enfrentamento a essa violência. Fica subentendido que se trata de lugares indubitavelmente seguros para as mulheres, quando na verdade os dados demonstram o oposto.

Quem não se lembra da pastora e cantora Sarah Mariano, que entrou para as estatísticas de feminicídio ao ser morta a mando do seu marido, também pastor? Ela foi desencorajada a denunciar as violências que sofria e orientada de que suas orações transformariam seu marido violento em um homem de bem. De igual forma, assistimos ao líder religioso João de Deus fazer dezenas de vítimas ao se aproveitar da fé para violentar sexualmente suas fiéis.

Cartaz da lei 14.786/23, 'Não É Não'
Cartaz da lei 14.786/23, 'Não É Não' - Reprodução

Esses casos, que se anote, não são isolados e demonstram que o direito constitucional à liberdade de crença não pode ser interpretado como direito de agredir, de desencorajar vítimas ou de evitar, em nome da fé, que agressores sejam devidamente punidos, sob pena de a religião laborar como mecanismo de colaboração da violência de gênero.

Não é possível debater violência contra mulher e seus remédios sem que todas as instituições religiosas sejam inseridas na discussão, sob pena de se permitir que a fé seja usada como escudo para oprimir, violentar e calar mulheres.

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