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Mário Theodoro

Defender cotas raciais é compreender a desigualdade em toda sua extensão

Opção por cotas sociais reforçaria a iniquidade entre brancos e negros no país

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Mário Theodoro

Membro do Conselho Diretor do Cedra (Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais), é autor de “A Sociedade Desigual: Racismo e Branquitude na Formação do Brasil” (ed. Zahar)

Reabre-se o debate sobre a política de cotas raciais nos concursos públicos. A atual lei 12.290/14, que regula a matéria, permanece em vigência somente até junho deste ano. Tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 1.958/2021, do senador Paulo Paim (PT-RS), que visa garantir a continuidade do sistema atual com a novidade de incluir como beneficiários das cotas os povos originários. O clima no Legislativo é de tensionamento, e as posições divergentes sobre a pertinência ou não das cotas se acirram, extrapolando os limites do Parlamento.

O principal argumento contrário à continuidade da Lei de Cotas é o que critica a utilização do critério racial como elemento definidor da ação pública. Alegam seus apoiadores que o combate à desigualdade, que guia a ação governamental nesse caso, deveria estar conectado a uma âncora de renda e não à clivagem racial. Trata-se da já antiga apologia à chamada cota social, em benefício dos mais pobres, independentemente de sua raça ou cor. Retoma-se, assim, a discussão sobre a adequação das cotas raciais ou das cotas sociais.

Dois problemas podem ser identificados nesse argumento. Em primeiro lugar, ele desconsidera os importantes avanços no ingresso de candidatos negros advindos da implementação da lei 12.290/14, que, em que pese restrita aos órgãos federais, foi seguida pelos demais Poderes da República e pelos governos em níveis subnacionais. Em segundo, volta a confundir o debate sobre pobreza com aquele sobre desigualdade racial.

Para compreendermos a desigualdade brasileira em toda sua extensão e buscarmos estabelecer instrumentos de políticas que se contraponham a esse quadro devemos, portanto, reconhecer o papel do racismo como elemento fundante. O racismo se estrutura como uma ideologia, um conjunto de crenças e valores que organizam e hierarquizam a sociedade, desdobrando-se em duas dimensões distintas: a discriminação e o preconceito racial. A discriminação é o próprio racismo em ato, que impinge a outros indivíduos ou grupos situações de constrangimento e mesmo violência associadas à cor da pele. A discriminação é crime imprescritível e inafiançável e deve ser combatida pelos instrumentos legais previstos na Lei Caó.

Já sobre o preconceito, mais complexo, não se identifica o sujeito ou mesmo a ação. Do preconceito aparecem apenas os resultados: a ausência de negros em lugares sociais de relevo. O instrumento de combate ao preconceito é conjunto do que se convencionou chamar de ações afirmativas, que engloba políticas de diversos matizes —sendo que, no Brasil, a mais importante é a política de cotas. O preconceito fecha diuturnamente as portas para a população negra; as cotas representam sua reabertura. Daí a importância de que as políticas de cotas estejam associadas à questão racial, pois a ela estão diretamente vinculadas.

A fixação de cotas sociais não tocaria no problema étnico, cerne de nossa desigualdade. Ao contrário, estaríamos incorrendo novamente no secular erro de ignorar a questão racial e, assim, reforçar os tradicionais padrões de iniquidade entre brancos e negros no país. Sem a ancoragem racial, a estratégia das cotas perde força como instrumento de promoção da igualdade racial e, em última análise, de combate à nossa secular e perene desigualdade.

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