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Júlia Portes

Ninguém aguenta mais ouvir a palavra 'eu'

O que sonhamos, escrevemos e inventamos também somos nós

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Júlia Portes

Atriz, escritora e roteirista, é autora de “O Céu no Meio da Cara” (NAU Editora), pelo qual foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria “Escritor(a) Estreante”

Como escritora, oficineira, pesquisadora e atriz, sou com frequência procurada pelas pessoas para ouvir sobre os seus desejos criativos. A reclamação que mais me chama a atenção é a dificuldade de ultrapassar a si mesmo na hora de inventar uma história. Como fazer nascer uma personagem em que o "eu" não esteja no centro da narrativa? No mesmo segundo em que escrevo isso tenho receio de que essa pergunta seja obsoleta num mundo em que o interesse maior é pela não ficção.

Saber se o que acontece na série, no filme ou no livro é baseado em fatos reais é um medidor do interesse do público. A obsessão pela pergunta "mas isso aconteceu mesmo?" revela o fetiche. O que é acontecer mesmo? A escritora Aglaja Veteranyi, quando confrontada pela indagação, respondia: "A imaginação também é autobiográfica". Essa frase nos lembra que o que sonhamos, escrevemos e inventamos também somos nós. É preciso quebrar a reta e fazer contato com estranhamento de sua infinidade. Como vamos criar personagens não humanos se não conseguirmos nem misturar a nossa vida com a da nossa vizinha para escrever uma ficção?

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 07 de Abril de 2024, mostra o desenho de uma pessoa sentada em um puff dentro de uma bolha navegando no mar.
Ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho/Folhapress

Acredito que o mesmo sistema que é viciado no "eu" também é viciado no conflito. Como diz a autora de ficção científica Ursula K. Le Guin, o conflito é um elemento poderoso da narrativa, mas não precisa ser o centro da mesma. Para uma narrativa poder expandir suas possibilidades de formato precisamos de mais perguntas do que de fórmulas. De mais pessoas do que de heróis.

O que pode ser perseguido na contação de uma história para além de um conflito? Não há desejo em negá-lo. Mas e se em vez da "profunda falta de entendimento entre duas partes" —como sugere o Google ao definir o termo—, eu estiver em busca de coletar? E se eu quiser brincar de quebra-cabeça em vez de cabo de guerra? Como em "O Manto da Noite", livro estonteante de Carola Saavedra em que a subjetividade em constante mutação conversa com as vozes da natureza, do inconsciente. E se a estrutura do sonho passar a nos interessar mais do que a jornada do herói? O sonho é espiralar, é côncavo, nada pontudo, dura entre alguns segundos e 40 minutos e nunca resolve, mas explode, embaralha e destranca. Escurece tudo que precisa.

Num processo de escrita, como fazemos para entrar em contato com esses pluricorpos? Como abrir mão da racionalidade causa e efeito? Como entrar no mundo do tudo pode acontecer?

Talvez esteja na hora de se deixar ser vista pelo relógio quebrado da cozinha, escrever a voz de uma árvore, de um rio, de uma enchente; todas as vozes muito antigas, mas que precisam ganhar altura. Ou permitir que na página 20 da sua autoficção você tenha um ataque cardíaco. E depois? O que vem depois?

É preciso inventar as novas estruturas narrativas para depois rasgá-las e nunca abandonar, em nenhuma parte do processo, as perguntas. Como nasce uma personagem? Nasce de outra personagem? Nasce da história anterior? Nasce da história futura? Já estava aqui? Estava aqui toda, todinha, aí nasceu? Quem chega primeiro: a personagem, a autora ou a palavra? Só saberemos quando nossos corpos entrarem em erupção.

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