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Júlia Portes

Todas as pessoas têm vozes artísticas

Oficinas de criação e escrita são ferramentas de manutenção do mistério e do sentido da vida

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Em 2020, partindo da necessidade de encontrar uma fonte de renda num momento em que não havia nem uma chuvinha esporádica no deserto, comecei —assim como uma quantidade considerável de artistas— a ministrar oficinas de criação e escrita.

Organizar minha própria metodologia para poder repassá-la, conhecer pessoas de diferentes lugares com desejos de criação e motivos diversos para estarem ali me apaixonou. Crio vínculos e acompanho o desenvolvimento de belas pesquisas artísticas.

Mais do que aprimorar tecnicamente a escrita literária ou descobrir os interesses criativos do momento, as oficinas são uma ferramenta de nutrição do sentido da vida —sei que comungo dessa opinião com outras pessoas adeptas da prática oficineira. Esses espaços, virtuais ou presenciais, são zonas autônomas temporárias. Constrói-se um bando formado por gente com diferentes bagagens, embora com interesses em comum, que pactua: durante três horas por semana vamos dar umas às outras o que temos de mais precioso, nosso tempo e atenção.

Aprendo imensuravelmente tanto nas oficinas que faço como aluna como nas que ministro. A verdade é que ministrar também não me tira da posição de aprendiz. Na maioria das vezes não é necessária experiência prévia para participar de oficinas de literatura ou teatro e, por isso mesmo, sou uma entusiasta de que pessoas que nunca se imaginaram num ambiente assim e não sabem o que esperar desses encontros se aventurem a experimentar.

Oficina de leitura - Júlia Portes
Oficina de leitura de Júlia Portes - Júlia Portes/Divulgação

Todas as pessoas têm temas importantes que as perseguem e por milhares de motivos, sócio-políticos-estruturais-emocionais, às vezes elas conseguem ter espaço ou não para persegui-los de volta. Ou seja, são inúmeras as condições necessárias para que se consiga devotar atenção (de novo essa palavra) ao que a princípio parece não ter utilidade. Vivemos num mundo em que a lentidão está impossível e as ações precisam de um propósito claro para que tenham direito de existir. Criar é uma ação na contramão do tempo linear produtivo.

Para testar essa teoria —de que todas as pessoas têm vozes artísticas—, ministrei uma imersão de escrita na qual desenvolvi 27 perguntas para serem respondidas pelos integrantes. Para cada pergunta havia um tempo de escrita estipulado e cada pessoa deveria responder em fluxo, ou seja, manter a caneta trabalhando no papel até que o tempo acabasse, escrever mesmo sem saber o quê. Foram cerca de duas horas de escrita, tempo esse que convidava os artistas a um estado de cansaço mental e físico.

A partir desse exercício, diversas composições de vozes se articularam: V, a velha calada que tem como seu único pertence um ventilador; Daniel, o menino que fala apenas quando está acompanhado de seus bichos de papel; Maria Dulce, diagnosticada com a síndrome do coração partido; Sandra, uma montanha de Minas Gerais. Essas são algumas das muitas personagens nascidas.

O mistério existe. No entanto só podemos vê-lo se o invocarmos. As oficinas são ecossistemas para que possamos voltar a acreditar que um lápis pode ser uma varinha condão, que se reunir com outras pessoas em prol da imaginação é um resgate da tão valiosa curiosidade da infância, capaz de inventar mundos, e que a ficção tem mecanismo de egrégora.

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