Descrição de chapéu
Livros

'O Manto da Noite' faz arquitetura complexa de visões da América do Sul

Livro de Carola Saavedra precisa de leitores capazes de reconhecer suas referências para interpretá-lo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luisa Destri

O Manto da Noite

  • Preço R$ 64,90 (160 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Carola Saavedra
  • Editora Companhia das Letras

"O Manto da Noite", de Carola Saavedra, tem uma arquitetura ambiciosa. Dividido em seis partes, mobiliza diferentes gêneros e configurações temporais distintas, procurando uma combinação complexa de pontos de vista em torno de experiências que ecoam aspectos históricos do continente sul-americano.

mulher de cabelos pretos e roupa preta em meio a árvores
A escritora Carola Saavedra, de 'O Manto da Noite' - Camilla Loreta/Divulgação

Buscar sentido na soma de suas partes, isto é, encontrar a possibilidade de uma compreensão totalizante do livro, é tarefa para um leitor capaz de elaborar hipóteses de interpretação com base no reconhecimento das referências. Não é o caso desta resenhista, que pretende apenas descrever elementos e características possivelmente relevantes para uma leitura mais qualificada.

A primeira e a última parte formam uma moldura para as demais, destacando-se graficamente em itálico. Nelas, uma voz feminina se dirige a uma interlocutora também feminina, atendendo a um apelo ("Você quer que eu fale" é a frase que inaugura o livro).

Em "Pré-escrito" se apresentam alguns aspectos centrais ao conjunto —em especial, a ideia de que há uma ilha a se buscar— e se anuncia uma relação que é de maternidade e também de rompimento com o tempo histórico ("eu te carregava em meu ventre, durante meses, anos"). Já "Pós-escrito" soma a metamorfose aos processos de gestação e morte, propondo ao mesmo tempo uma circularidade para a obra e uma concepção cíclica do tempo baseada no corpo feminino.

A segunda parte, "Primeiros anos", é uma narrativa convencional, feita de verbos no presente, em torno de uma menina de três anos que chega ao Rio de Janeiro para encontrar os pais. Criada pela avó e falante apenas de espanhol, ela não tem memória da convivência e, por isso, desconfia não ser filha do casal.

O registro se modifica a seguir, em "Cordilheira". A cadeia montanhosa antes vista do avião se torna agora personagem, dialogando com uma figura feminina que fala em primeira pessoa. A personificação é apenas uma manifestação da convivência entre os seres: no nível da frase, a separação sintática é muitas vezes atenuada, de modo que as falas de diferentes personagens ocupam um mesmo período: "Vejo que voltou ao corpo anterior, sim, ainda não me acostumei".

Uma proliferação de mortos intensifica o conflito entre história e natureza que o leitor já havia intuído nessa altura do livro. Por meio da protagonista feminina, entre os mortos (não) chorados coletivamente destacam-se os mortos associados ao sofrimento pessoal —aqui parecem retornar a menina e seus supostos pais, num reencontro que elabora e perdoa a convivência difícil.

A narração é marcada como cadeias de associações aparentemente livres e condensações, levando o leitor a supor que está diante de um sonho. As referências reconhecíveis ganham ares de material diurno aproveitado na elaboração onírica. Tudo leva a crer que é a menina da parte anterior que, crescida, sonha.

Os limites seguem se embaralhando a seguir, em "Diário carioca", com registros inicialmente cotidianos e convencionais, por vezes até enfadonhos, de uma escritora que vê frustrado seu desejo de publicação. Ela afirma estar escrevendo um novo livro —aliás, gravando um novo livro, pois um problema nos braços a impede de escrever os próprios textos.

É de se supor, então, que ela mesma não possa estar escrevendo seu diário, o que exige do leitor a criação de mais uma hipótese para a compreensão da estrutura do livro —necessidade reforçada pelo relato dos eventos do dia 19 de novembro, a última entrada, que convém não revelar para evitar o spoiler.

O problema da narração é parcialmente suspenso em "Caliban à deriva", um capítulo dramático. Aqui a referência fundamental se esclarece: pondo em cena personagens em busca de uma ilha, a seção retoma "A Tempestade" de Shakespeare e, com a memória de debates desenvolvidos por Montaigne, recria a problemática entre humanismo e colonialismo representada pelos personagens da peça.

Mas, a partir de sucessivos encontros vividos pelo Caliban de Saavedra —com Sycorax, sua mãe, Ariel e Dioniso–, a ilha é deslocada em sua função de signo: passa a se associar ao prazer humano, que inscreve no corpo a falta. "Tudo já aconteceu. O mundo acabou e recomeçou mil vezes", afirma a narração, que retorna na conclusão do texto dramático.

Essa é apenas uma das manifestações da circularidade, que no repertório do romance se soma ao passado histórico, ao futuro distópico e à fantasia fora do tempo. Já o presente, cristalizado desde o início na figura do natimorto, parece estar reservado à elaboração do luto.

Em uma passagem capaz de sintetizar a tentativa de costurar tempos e traumas individuais e coletivos, uma das personagens afirma: "Fizemos o que foi possível com o que o passado nos deu. Esse fluxo de palavras e silêncios, passagem de uma cadeia que se formou muito antes de nós". Que se possa interpretá-la como realização literária, para além de seu desejo de construção.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.