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Dionisio Neto

100 anos com Kafka

Gigante disfarçado de inseto asqueroso é imortal, uma troça do destino

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Dionisio Neto

Ator, autor, produtor e diretor artístico da Companhia Satélite do Amor

O que dizer diante de tudo o que já foi dito sobre o gênio absoluto Franz Kafka (3/7/1883-3/6/1924)? O silêncio. Nada mais kafkiano. A tensão do momento entre o sim e o não, entre o ser e o não ser. E, no núcleo dele, o imponderável, o inesperado, o assombroso. Kafka é o próprio Big Bang.

Contudo, desde que o li pela primeira vez no Colégio Equipe, aos 15 anos, fascinado com as imagens de HQ de "A Metamorfose" —este conto perfeito que ele não queria que ninguém lesse, talvez porque sabia que muitos se identificariam com a condição de inseto diante da crueza do mundo dos gigantes, e que essa consciência poderia ser e não ser entre a condenação mísera da existência e a libertação total dela—, nunca li nada sobre um fato que não se comenta, mas que o faço aqui: Franz Kafka foi enterrado pelos seus pais em uma cerimônia judaica, oito dias após sua morte. Os mesmos que enterraram seus irmãos ainda na infância. E Julie Kafka, sua rica e forte mãe, enterrou também seu pai, Hermann.

O escritor Franz Kafka em retrato feito na década de 1910 - Hulton Archive/Getty Images

A dor acompanhou sua família e seu corpo frágil desde sempre. Seu sofrimento físico e espiritual era quase que diário. Suas infindáveis dores de cabeça, pulmão e estômago e suas dores do coração, do peito e da alma —que transformava tudo em ficção, cartas, aforismos, contos e diários extensos. Escreveu sua obra à luz de velas, à mão, em alemão —motivo pelo qual ele não é tão celebrado na sua cidade natal, Praga, como deveria, visto que não escreveu em tcheco.

Ainda que só tenha escrito uma única peça teatral ("O Guardião da Tumba"), Kafka amava o teatro e, sobretudo, as atrizes, para quem esparramava um amor platônico. Um de seus melhores amigos era um ator, o judeu Löwy.

Neste ano celebra-se no mundo a memória dos cem anos da sua morte prematura por tuberculose. Ela revelou-nos seus segredos mais íntimos e inconfessáveis. A desobediência civil de Max Brod, seu amigo que, ao contrário do desejo de Franz, publicou sua obra e mudou o imaginário ocidental para sempre. Seus melhores romances são inacabados. Eles nos convidam a continuá-los individualmente, se transformam e se espelham na vida em si.

O mundo de Kafka vai muito além do sexy, terrível e engraçado "O Processo". Em "O Abutre", ele cria uma história com começo meio, fim e uma catarse nuclear em apenas um parágrafo. Em "Onze Filhos", descreve a personalidade única de cada um deles, e o defeito em comum —um olho que pisca. Em "Blumfeld, um Solteirão de Mais Idade", o escritor cria um objeto em 3D flutuante, prevê a tecnologia dos hologramas, só inventada em 1948.

Desde 2016 apresento pelo Brasil o espetáculo "Carta ao Pai" em teatros, bibliotecas, casas, apartamentos, auditórios, livrarias e onde mais houver público. Vivo o pai e o filho conversando entre si, duas almas no mesmo corpo. A carta que nunca foi entregue ao destinatário por influência da mãe é entregue à humanidade. É impressionante ver a atualidade da epístola e a transformação do público, que perdoa pais e filhos após a apresentação.

Kafka vive mais do que nunca. O gigante disfarçado de inseto asqueroso é imortal, uma troça do destino. A relação de amor e ódio profundo a Hermann Kafka, o filho ogro e semianalfabeto de açougueiros que educou um gênio e foi o maior responsável pela existência de sua obra literária.

Recentemente, ele foi cancelado nas redes sociais por causa do seu gosto por pornografia e boemia. O disparate inútil dessa incongruência é ironicamente kafkiano, bem como seu retrato pintado por Andy Warhol —o underground virou pop.

Após sua morte, do homem que passou toda a vida combatendo o desejo de acabar com ela, Kafka efetivamente nasceu. Até agora são cem anos com ele, que nos ensinou a ver a poesia do assombro do mundo, o absurdo fascinante da nossa mísera e gigantesca existência com uma leveza extraordinária que nos leva além. É como a realização de uma autoprofecia sobre o sentido surreal da vida: ela acaba.

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