Descrição de chapéu
Roberto Porto

Pena maior para vítima de estupro inclui bizarrice em legislação penal

Cabe ao Parlamento ser guardião da legalidade e da proibição do excesso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Roberto Porto

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo

O projeto de lei 1904/24, o PL Antiaborto por Estupro, ganhou grande evidência ao propor a alteração do Código Penal de modo a criar punição para a mulher que realizar o procedimento de aborto acima de 22 semanas de gestação, inclusive no caso de gravidez resultante de estupro.

A proposta aumenta de 10 para 20 anos a pena máxima para quem realizar tal procedimento, tornando a reprimenda mais rigorosa do que a prevista para o crime de estupro.

Protesto contra o PL Antiaborto por Estupro, que quer aumentar a pena para o aborto depois de 22 semanas, na avenida Paulista, em São Paulo - Tuane Fernandes - 15.jun.24/Folhapress

A iniciativa legislativa reascende questão já enfrentada pelo STF, quando do julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 1141), que havia suspendido resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a utilização de uma técnica clínica (assistolia fetal) para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro, por entender, diga-se de forma assertiva, que a hipótese contemplava indícios de abuso de poder ao limitar procedimento médico reconhecido e até mesmo recomendável pela Organização Mundial da Saúde, além de previsto em lei.

Na ocasião, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, em bom tom, apontou que fora ultrapassada a competência do CFM ao inventar restrição não prevista em lei, "capaz de criar embaraços concretos e significativamente preocupantes para a saúde das mulheres".

É certo que a legislação brasileira, de forma responsável, não estabelece expressamente quaisquer limitações temporais para a realização do denominado aborto legal. Nem poderia deixar de ser diferente em um país em que menos de 2% dos municípios oferecem serviço de aborto legal em unidades de referência à saúde. Mas não é só. No Brasil, 70% dos casos de estupro de meninas acontecem dentro de casa, muitas vezes praticados por familiares.

A desinformação, o medo, o constrangimento e a falta de recursos materiais são elementos que justificam, no mais das vezes, a demora na procura pelo atendimento por parte das vítimas.
Segundo levantamento divulgado pela Folha, de acordo com informações do Ministério da Saúde, por ano são realizados cerca de 2.000 abortos legais em nosso país. Destes, estima-se que 600 sejam feitos após a 22ª semana de gestação.

Nesse cenário preocupante, é absolutamente necessária uma reflexão sobre as consequências nefastas resultantes da imposição de limitação temporal ao denominado aborto legal. E a cruel imposição de penalização a tal conduta. Que ofende, inclusive de forma gritante, o princípio da proporcionalidade das penas, criando a bizarra situação em que a vítima de estupro pode ser repreendida —e com pena maior do que a aplicada a seu algoz.

É certo que os castigos disciplinares têm a função de corrigir os desvios, devendo, portanto, serem essencialmente corretivos. Para tanto, deve o Poder Legislativo Federal, detentor da capacidade de legislar na esfera penal, funcionar como guardião de um princípio pouco invocado, mas de fundamental importância: o da proibição do excesso. Essa importante função está ligada a outro princípio não menos relevante: o da legalidade, inspirado nas doutrinas alemã e norte-americana.

As ideias de necessidade, moderação e razoabilidade das penas não é nova. Assim já se posicionava Beccaria, entendendo que se uma pena igual é destinada a dois delitos que ofendem desigualmente a sociedade, não haverá obstáculos a impedir a prática de um delito mais grave.

Pois bem. É preciso partir da conclusão lógica de que a criação de limitação temporal para o aborto legal coloca em risco a saúde da gestante e fere a dignidade da mulher, vítima de violência sexual. E a punição da gestante vítima de estupro, com o mesmo rigor que a pessoa que a violentou, afronta até mesmo a própria eficácia do sistema punitivo.

O sucesso do poder disciplinar pressupõe, ao contrário da proposta de alteração legislativa apresentada, um consenso bem estabelecido a respeito da arte de punir, não mais ligada a ideia de dor, de sofrimento, do suplício, a fim de que cada indivíduo da sociedade possa distinguir claramente ações criminosas das ações virtuosas. A decomposição dessas normas toma os indivíduos ao mesmo processo.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.