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Shigueo Watanabe Jr

Em plena emergência climática, EPE faz propaganda para fósseis

Não faz sentido apostar em uma fonte de receitas cada vez mais arriscada

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Shigueo Watanabe Jr

Físico, pesquisador do Instituto Talanoa

Poucos dias antes dos temporais que devastaram o estado do Rio Grande do Sul, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) utilizou seu cacife técnico para produzir propaganda para os combustíveis fósseis, principais causadores da crise climática.

Em uma série de estudos, a EPE exaltou a indústria do petróleo como "protagonista fundamental na jornada do Brasil rumo a uma energia mais sustentável".

Os estudos da EPE a colocam na contramão da transição energética. A queda dramática dos custos das energias renováveis e a determinação da COP28, no ano passado, de iniciar nesta década a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, deveria ter colocado os planejadores de energia de todos os países para trabalhar na implementação da infraestrutura e do modelo econômico que dará fundamento a essa transição. Não é o que se vê por aqui.

Os estudos apresentam dois argumentos centrais: 1) que as etapas de exploração e produção seriam pouco relevantes para as emissões nacionais –já que as emissões são contabilizadas apenas no consumo; 2) as receitas do petróleo seriam significativas, colocando como "meta" uma produção de 5 milhões de barris por dia de 2032 até 2050.

Ambos os argumentos são falaciosos.

Mesmo que o Brasil não vá consumir e sim exportar a maior parte do seu petróleo, ele irá promover o aumento das emissões globais se inundar o mercado mundial com óleo e fortalecer o papel dessa fonte na matriz global.

A própria afirmação de que as emissões nacionais não aumentarão com a exploração de mais óleo e gás não se sustenta. É notório que a indústria e o próprio governo pressionam pelo aproveitamento do gás do pré-sal, buscando aumentar o consumo de uma fonte fóssil a partir da "disponibilidade" desse recurso. Vide os 8 GW de gás contrabandeados para dentro da medida provisória de privatização da Eletrobras.

Além do gás, a produção de petróleo no território nacional tende a gerar dificuldades similares ao processo de descarbonização. A disponibilidade de óleo nacional, especialmente em novas fronteiras, pode justificar o investimento em refinarias para o processamento e a disponibilização de derivados. Toda essa oferta tende a tirar o ímpeto da expansão das renováveis.

O segundo argumento, que enaltece as rendas do petróleo, está baseado no atingimento de uma meta simplesmente aleatória. A produção atual gira em torno de 3,6 milhões de barris por dia, e a definição de uma meta quase 40% maior só teria racionalidade se o mundo não necessitasse urgentemente cortar emissões.

Os próprios estudos da EPE apontam que há mecanismos de incentivo a investimentos na exploração e produção oferecidos pelo governo brasileiro. De acordo com o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), em 2022 os subsídios a fontes fósseis foram em torno de R$ 81 bilhões. Esses incentivos contrastam com a imagem que a indústria quer vender de um setor que contribui para a saúde financeira do Estado brasileiro. Além disso, parte dos crescentes custos dos desastres climáticos já pode ser também colocada na conta das externalidades negativas causadas por essa indústria.

Já quando se fala de bancar a transição energética, a Agência Internacional de Energia afirma que as empresas estão apenas "observando à distância" e foram responsáveis por financiar apenas 1% do montante total direcionado às fontes de energia limpa em 2022. Enquanto isso, lucros extraordinários recentes fizeram CEOs perderem a vergonha ao distribuir dividendos e voltar atrás em compromissos climáticos.

Aprofundar a dependência dessa indústria coloca o governo em posição frágil para tomar decisões sobre o rumo energético do país. Não faz sentido apostar em uma fonte de receitas cada vez mais arriscada e volátil à medida que o mundo se descarboniza e ficarmos atrasados nas indústrias e nos conhecimentos relacionados às energias limpas, setor que o Brasil tem todas as condições de liderar.

Nossos tomadores de decisão e negociadores da COP30 fariam bem em ouvir mais o eco da catástrofe gaúcha e menos as posições que lobistas do petróleo insistem em defender em pleno 2024.

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