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Marcos Lopes

Academias populistas

Ato de contrição permeia a política dos novos intelectuais públicos

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Marcos Lopes

Professor de literatura geral e comparada na Unicamp

Roberto Campos intitulou um de seus artigos "Esquerdas burras". Não era um jeito educado de tratar o oponente, embora despertasse a paixão pelas ideias, um dos afetos básicos da vida intelectual. Nelson Rodrigues, um crítico contumaz de sua época, olhava com ceticismo a natureza humana. Nelson e Campos estavam dispostos a correr riscos. Tinham suas crenças, mas não sofriam de tibieza e indiferença frente aos cacoetes de uma elite letrada.

Campos se candidatou a uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras (ABL), sofreu boicote de alguns acadêmicos, não desistiu e foi eleito. Nelson passou, temporariamente, por um apagamento público, para depois ser objeto de pesquisas, biografias e minisséries. Se estivessem vivos, provavelmente seriam cancelados nas mídias digitais.

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A historiadora Lilia Schwarcz entre imortais em sua posse na Academia Brasileira de Letras - Eduardo Anizelli - 14.jun.24/Folhapress - Eduardo Anizelli/Folhapress

A diversidade cultural tornou-se o imperativo categórico de nosso tempo, inibindo a inteligência e a substituindo por um sentimento de culpa. O cineasta Denys Arcand afirmou, em uma de suas entrevistas, que para a nova geração "a liberdade de expressão não é um objetivo tão importante. O que importa para eles é a moralidade da expressão —se essa expressão é totalmente moral".

Essa moralidade esteve presente na posse da nova imortal da ABL, Lilia Schwarcz. A acadêmica mencionou, em seu discurso, que Lima Barreto contaria com dois biógrafos membros da ABL, mas ele mesmo fora recusado três vezes, em seu tempo, por essa instituição. Um protocolo básico para a pessoa branca e progressista ser aceita nesses novos tempos é proferir, em público, sua mea culpa. Ato de contrição permeia a política dos novos intelectuais públicos.

Gênero, moral, diversidade e culpa são o novo leito de Procusto no espaço público. Para que nele caiba, o intelectual será ajustado às suas medidas. Se for pequeno demais, será esticado; grande, amputado. O importante é que ele se adapte às medidas e aceite ser acolhido. Acolhimento é a palavra-chave das políticas de Estado. Qualquer desconfiança desse espírito humanitário resulta em reprimenda. Questionar tais políticas é sinal de obtusidade.

As políticas identitárias ambicionam uma nova ordem social ideal. Isso é o contrário do que o crítico Lionel Trilling chamou de realismo moral. Segundo ele, há um paradoxo na natureza humana que consiste em fazer "dos nossos companheiros objetos de um iluminado interesse", orientado, inicialmente, pela piedade; em seguida, sabedoria e, por fim, pela coerção dessas pessoas. Para nos libertar dessa sequência trágica e irônica, necessitamos de um realismo moral, "que é produto do livre jogo da imaginação moral".

Desconfiar do iluminado interesse dos acadêmicos pelas minorias requer realismo e imaginação morais, disponíveis nas melhores criações artísticas. Mas isso exige que instrumento crítico e ritos de reconhecimento institucional não sejam um sucedâneo das ações políticas bem-intencionadas. Quem sabe um pouco daquele humor de Groucho Marx não nos fizesse bem: "Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio".

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