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Dalson Figueiredo e Ernani Carvalho

Venezuela: a anatomia de uma fraude

Dados do Projeto Alta Vista não deixam dúvidas: vontade popular foi vilipendiada

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Dalson Figueiredo

Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences e visiting scholar na Universidade de Oxford

Ernani Carvalho

Professor titular da UFPE e coordenador do Praetor (Grupo de Estudos sobre Poder Judiciário, Política e Sociedade)

Já era madrugada do dia 29 de julho quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) proclamou o resultado da eleição presidencial na Venezuela. Antes da divulgação, o CNE alegou que o sistema foi alvo de ataques, mas não mostrou evidências do ocorrido. Com um comparecimento de 59% e 80% das urnas apuradas, Nicolás Maduro saiu vitorioso com 51,2% dos votos válidos. Edmundo González ficou em segundo lugar, com 44,2%. Esse desfecho causou perplexidade. Um levantamento da Atlas Intel indicava 51,9% para González e, curiosamente, os mesmos 44,2%, mas para Maduro. O mais preocupante, porém, é que as atas das mesas eleitorais não foram publicamente divulgadas, levantando dúvidas sobre a integridade da contagem dos votos.

A Venezuela se tornou um país controverso. Já foi um dos mais ricos da América Latina e, mesmo passando por períodos de crise política e por regimes autoritários, a terra de Simón Bolívar prosperou entre 1959 e 1983. Em 1950, já era um dos maiores produtores mundiais de petróleo.

Homem caminha diante de propaganda do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, vandalizada durante protestos contra ele em Valencia, no estado de Carabobo - Yuri Cortez - 31.jul.24/AFP - YURI CORTEZ/AFP

Apesar dos avanços, a dependência crônica do ouro negro tornou o país um exemplo clássico de "maldição dos recursos naturais". Trata-se de um paradoxo em que países ricos em recursos naturais, como petróleo, gás natural, minerais, e outras commodities, exibem menor crescimento econômico e estabilidade política do que países com menos recursos naturais.

A abundância de recursos naturais tende a incentivar à corrupção. O Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional varia entre 0 e 100. Quanto maior, mais forte são percebidas as instituições e menor o nível de corrupção. Entre 2012 e 2022, a Venezuela exibiu sempre valores baixos. Comparativamente, as estimativas de 2023 colocam o Brasil na 104ª posição, com escore 36. A Venezuela, com escore 13, ocupa o penúltimo lugar, apenas à frente da Somália, caso extremo de Estado falido.

Essas informações ajudam a entender a escolha da Venezuela como estudo de caso do Projeto Alta Vista. A iniciativa desenvolveu um método de contagem rápida de votos que usa uma amostragem estratificada de seções eleitorais e uma margem de erro muito menor do que é usualmente empregada pelos institutos de pesquisa de opinião. Com o apoio de uma organização da sociedade civil venezuelana, foi possível implementar o programa já nas eleições do domingo passado (28). E que desafio!

A equipe do Projeto Alta Vista se preparou para enfrentar cenários adversos. A primeira expectativa era receber os dados oficiais, conforme prometido pelo CNE (Conselho Nacional Eleitoral) e como determina a lei eleitoral venezuelana. Essa etapa não se concretizou, e a equipe adotou um plano B. Utilizando chatbots em redes sociais, foram colhidas fotografias e registros de boletins de urna. Depois de validadas, essas informações foram inseridas em um servidor web, permitindo a atualização dinâmica de um dashboard online. Essa ferramenta atualiza as estimativas em tempo real e fornece expectativas precisas de votos para cada candidato. O resultado: González vencedor, com 66%, contra 31% para Nicolás Maduro.

Seguindo as melhores práticas científicas, todos os dados e scripts computacionais estão publicamente disponíveis. O CNE, infelizmente, não pode dizer o mesmo.

Na verdade, o site do CNE, que deveria reportar informações detalhadas, está fora do ar desde a noite da apuração. Para efeito de comparação, imagine se tal fato ocorresse no Brasil. Qual seria o julgamento de integridade do pleito se o sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral ficasse inativo imediatamente após a divulgação do resultado final? E se o próprio órgão se negasse a divulgar os dados por seção eleitoral?

Os dados do Projeto Alta Vista demonstram que as estimativas do CNE não correspondem à vontade popular. É a ciência agindo para proteger a democracia e os direitos humanos contra interesses de grupos políticos específicos, inaugurando eleições baseadas em evidências.

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