Descrição de chapéu A mulher da casa abandonada

Podcast A Mulher da Casa Abandonada entrevista Margarida Bonetti

Episódio final da série traz a versão da brasileira para o crime de que foi acusada nos EUA

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São Paulo

O sétimo episódio de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha que investiga o passado de crimes por trás de uma mansão degradada em São Paulo, publica a primeira entrevista de Margarida Bonetti. Ela fala sobre a acusação de ter mantido uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão nos Estados Unidos.

Depois de 72 horas rondando a casa em Higienópolis para tentar ouvir a versão de Margarida, Chico Felitti recebe uma ligação dela na manhã de um domingo, dia 29 de maio. A conversa durou mais de duas horas e foi editada nesse episódio, que fecha a série lançada em 8 de junho.

Na entrevista, Margarida se defende das acusações na Justiça americana e diz que FBI, congressistas e advogados tramaram um complô para aprovar uma lei que aumentou a proteção a empregadas domésticas de famílias estrangeiras nos EUA.

O episódio final do podcast já está disponível nas principais plataformas de áudio, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer, além do YouTube. A transcrição do roteiro está disponível no fim deste texto.

​A Mulher da Casa Abandonada é apresentado e escrito por Chico Felitti, autor do livro "Ricardo & Vânia", que narra a história de vida de um artista de rua conhecido como Fofão da Augusta, e que foi finalista do Prêmio Jabuti de 2020. Felitti também criou e apresenta "Além do Meme", série documental em áudio exclusiva do Spotify —eleita o Podcast do Ano pelo Prêmio Splash UOL em 2020.

A série tem participação da atriz e dramaturga Renata Carvalho, que interpreta em português as entrevistas feitas em inglês, e de Magê Flores, que apresenta o Café da Manhã, podcast diário da Folha, e também coordena a produção de A Mulher da Casa Abandonada. A edição de som do podcast é de Luan Alencar, e a produção é de Beatriz Trevisan e Otávio Bonfá.

Se você sabe, ou desconfia, que uma pessoa tem seu trabalho explorado, denuncie. A Folha explica neste texto como reconhecer o crime e efetuar a denúncia.

A capa do podcast tem o desenho de um casarão, em branco e preto. A imagem escorre até o nome do programa: A Mulher da Casa Abandonada
O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira que foi procurada pelo FBI - Editoria de Arte

Transcrição do sétimo episódio

A Mulher da Casa Abandonada

Esse podcast é uma reportagem que se baseou em registros de um caso de notório interesse público. Procurou ouvir todos os envolvidos e deu espaço às versões dos que se manifestaram. Essa série não é uma investigação policial, nem um processo judicial. A Folha condena qualquer tipo de agressão e perseguição contra as pessoas aqui retratadas.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Às dez da manhã de 29 de maio de 2022, meu celular toca. Do outro lado da linha está Margarida Bonetti, disposta a dar uma entrevista pela primeira vez na vida.

Faz menos de uma hora que eu saí da frente da casa abandonada, onde a encontrei depois de dias à espreita. Quando a gente se encontrou pessoalmente, Margarida falou comigo por menos de dez minutos. Pediu para escovar os dentes dentro de casa, fechou a porta e não voltou mais.

Assim que atendo, Margarida pede desculpa pelo sumiço. Diz que não me deixou sozinho porque tinha desistido de dar entrevista. Só estava se preparando para falar com mais conforto.

[conversa por telefone]

[Margarida] Alô?

[Chico] Alô, Margarida?

[Margarida] Ah, é esse número, né?

[Chico] Isso.

[Margarida] Tá, o caso é o seguinte. Você me desculpa em primeiro lugar, é porque como eu tinha que estar vestida com uma roupa mais quentinha, né? Porque estava começando a fazer calor, eu fui trocar e tudo pra ficar mais confortável, que ali onde a gente estava conversando bate sol, entendeu?

[Chico] Sim.

[Margarida] E você então me desculpe pela demora. (risada) É só pra poder ficar mais confortável um pouquinho pra conversar com você.

[Chico] Não, sem problema.

E, depois dessa desculpa, ela fala por mais de duas horas.

VINHETA DE ABERTURA

Eu sou Chico Felitti e esse é o episódio final de A Mulher da Casa Abandonada, um podcast da Folha que investiga a vida de Margarida Bonetti, uma brasileira que foi acusada de submeter uma pessoa a trabalho análogo à escravidão por quase vinte anos. Segundo uma investigação do FBI, ela agredia essa empregada, que trabalhava para a família dela desde que Margarida tinha nove anos de idade. A empregada parou de ganhar salário em 1979 e ficou sem pagamento até 1998. Renê Bonetti, que era casado com Margarida nesse período, foi condenado e cumpriu pena nos Estados Unidos. Mas ela fugiu para o Brasil e nunca foi julgada.

Esse episódio é um pouco diferente. Até agora, essa série foi um documentário em áudio. Um podcast narrativo, com cenas e ação. O que você vai ouvir agora é só uma conversa. Uma entrevista. A versão de Margarida.

A conversa teve mais de duas horas, mas esta vai ser uma versão editada que contempla o lado de Margarida. Em alguns momentos, eu vou interromper a entrevista para trazer outras informações. Ou para corrigir alguma coisa que ela tenha dito e que não é verdade. Isso porque existem contradições entre o discurso dela e as provas recolhidas pelo FBI. Muitas contradições.

A qualidade do áudio pode ter um momento ou outro de turbulência. Eu não esperava a ligação da Margarida. Quando o telefone tocou, eu só tive tempo de colocar meu celular no viva-voz com o gravador do lado. E, depois de semanas tentando falar com essa pessoa que jamais deu uma entrevista, eu não podia deixar passar essa oportunidade procurando um estúdio num domingo de manhã.

Episódio 7: A Mulher da Casa Abandonada.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

A primeira coisa que Margarida faz, no segundo minuto de ligação, é pedir que eu adie o lançamento deste podcast.

[Margarida] Eu gostaria de saber se… ãhn… a gente pode adiar esse negócio todo porque eu não tenho condições no momento. Mais pra frente um pouco, sim, entendeu? Tudo bem com você?

[Chico] Não, não posso. Eu preciso entregar essa semana. A série estreia em breve.

[Margarida] Entregar a série para o quê?

[Chico] Eu preciso entregar a série essa semana, porque ela estreia em breve. Ela estreia agora em junho.

Vale lembrar que eu estou falando com ela em um dos últimos dias de maio, depois de semanas tentando entrar em contato, sem nenhuma resposta.

[Margarida] Então, como um bom jornalista, vocês têm que saber, e todos eles sabem, né? Então, você deve saber, eu só vou lembrar isso, tente ouvir todos os lados antes de publicar qualquer coisa, certo? É verdade, certo?

[Chico] Por isso que eu fui atrás da senhora e procurei tanto, né? Fui na casa da senhora mais de dez vezes nos últimos dias, liguei em vários horários, bati e hoje saí correndo na manhã de domingo pra falar com a senhora porque me avisaram que a senhora estava lá. Tudo isso em compromisso com o outro lado, né? Para permitir que a senhora conte a sua versão da história.

Margarida então começa a se definir sem eu nem ter perguntado. É como se tivesse decorado um texto.

[Margarida] Eu quero que você saiba que a minha missão nessa vida, isso é importantíssimo pra mim, em tudo que eu faço, que eu falo, o que eu penso, onde eu consigo estender minhas mãos para agir. As minhas palavras, as minhas ações. É para fazer prevalecer o que é bom e o bem, o que é certo, o que é justo e o que é reto. Correto. Entendeu?

Ela se embanana, e tenta de novo.

[Margarida] Então eu quero… como é que é? Fazer prevalecer o que é bom e o bem, o que é certo. Ah! Já sei. Desculpa, é que eu estou com sono ainda. Fazer prevalecer o que é bom e o bem, o que é belo, o que é justo e o que é certo.

É só então que ela confirma. Nossa conversa é, sim, uma entrevista que pode ser gravada e usada no documentário. E ela explica porque, depois de 20 anos de silêncio, decidiu falar.

[Margarida] Eu quero sim falar, porque esse homem não é meu marido. Eu me divorciei desse homem por causa dessa porcariada toda. Dessa imundice toda, tá? Porque eles pensam que a pessoa que é casada com alguém que fez algumas coisas, que ela sabe do que ele está fazendo e tudo e eu não sabia de nada do que ele fazia, tá? Eu não sabia.

Ela diz que desde 2007 os dois não são mais casados. A data coincide com o fim da pena de Renê Bonetti, é o mesmo ano que ele saiu da cadeia. E ela afirma que não sabia o que o ex-marido dela fazia com a empregada do casal, enquanto eles moravam nos Estados Unidos.

[Chico] Mas o inquérito do FBI, agora partindo do que a senhora falou, o inquérito do FBI atribui à senhora as agressões à então empregada da casa, como puxar cabelo, arrancar mecha de cabelo dela, jogar sopa quente, fervendo no rosto dela, dar sapatadas e bater com o punho fechado na cara dela. Isso não aconteceu?

[Margarida] Pois é, eu vou explicar uma coisa pra você, Francisco. Eles criaram um personagem. Esse pessoal todo, todos eles que criaram esse rolo aí, eles tinham um interesse, e eu gostaria que você pesquisasse isso, até seria muito, muito interessante para a veracidade dessa situação e pra saber no que deu esse negócio. Você sabe por que tudo isso começou? Essa história? Eles pegaram dois bobos, três bobos. Que era ele, eu e a moça lá, a senhora, né?

Logo mais ela vai explicar quem são "eles" e o que foi essa conspiração que ela diz ter descoberto. Antes, ela pergunta sobre a senhora. A senhora é a mulher de 85 anos que foi empregada da família Bonetti por quase seis décadas. A pessoa que acusou Margarida e Renê de explorarem o trabalho dela e de agredi-la.

Ao contrário do que disse para Francisco, o zelador do edifício Joia, Margarida não é amiga dessa mulher. Ela nunca mais soube onde estava a antiga empregada. Tanto que Margarida pergunta dela.

[Margarida] Aliás, eu gostaria de saber se ela está bem. Ela está bem, como ela está? Você falou que falou com ela?

[Chico] Ela prefere que eu não fale nada sobre a vida dela pra senhora, ela inclusive me pediu.

[Margarida] Por quê?

[Chico] Porque ela não quer ter contato com a senhora. Nenhum. Jamais.

[Margarida] Nem eu quero! Pois ela foi uma mentirosa e uma traidora. Eu não quero falar nada com ela. Mas como eu gostava muito dela, ela era uma amiga pra mim. Eu a via como uma amiga. Uma amiga de infância. Então, eu gostava dela. Então eu tenho uma pura curiosidade de saber se ela está bem. Se ela está bem de saúde, está sendo bem tratada, está bem de uma forma geral. Será que isso daí você pode me contar?

[Chico] O que eu posso dizer é que eu encontrei ela e ela está bem de saúde.

Depois de querer saber como está a mulher que a acusou de agressões, Margarida volta a dar a versão dela do que aconteceu nos Estados Unidos.

[Margarida] Existe uma máfia de advogados, um grupo grande com interesses financeiros de que fosse aprovada uma lei para que as empregadas que viessem do Brasil e de outros países… Porque na época eles criaram outros assuntos, outros problemas com outras empregadas de outros países para conseguir fazer isso. Eu não posso dizer sobre os detalhes, mas eu sei desse, né? E aí eles criaram essa coisa toda, essa imundice, inventaram um monte de coisas e é por isso que eu faço questão de falar com você. Porque eu quero que você saiba o que foi inventado.

Essa lei que ela cita é o projeto que dava às empregadas estrangeiras o direito de ficar nos Estados Unidos depois de denunciar patrões ou patroas por trabalho abusivo ou por agressão. O projeto de lei que foi aprovado depois que o caso dos Bonetti veio a público.

Mas ela acredita que o projeto de lei não veio para beneficiar as trabalhadoras domésticas. Veio para achacar dinheiro dos patrões. É uma lógica parecida de quando eu a conheci protestando contra o corte de uma árvore. Ela dizia que funcionários da prefeitura tinham formado uma máfia para derrubar árvores saudáveis e assim ganhar dinheiro.

[Margarida] Existia, não sei se ainda existe, como se fosse uma máfia, organização de advogados que queriam ganhar dinheiro através do caso das empregadas que iam pros Estados Unidos e queriam se desvincular dos seus patrões. Então eles precisavam que fosse aprovada uma lei para que isso fosse possível, para que elas pudessem se desvincular legalmente dos patrões sem ficar ilegais lá no país. Você entendeu isso?

Margarida defende que a vizinha Vic Schneider tinha antipatia por ela. Diz que uma amiga de Vic queria ter comprado a casa onde Margarida morou, mas ela e o marido passaram na frente. Por isso, a vizinha nunca a perdoou. E acabou se juntando a essa máfia que ela acredita existir, que envolve o FBI, congressistas e advogados que defendem empregadas que dizem ter tido o seu trabalho explorado.

[Margarida] Eu nunca fiz nada. Eu não sou essa pessoa que inventaram. Eles in-ven-ta-ram uma pessoa, porque essa Vic Schneider, por vingança, ela começou a fazer as coisas de raiva da gente, e depois porque ela queria a amiga dela pertinho dela. Ela é uma pessoa voluntariosa, essa Vic Schneider. Ai de quem passe na frente dela e faça o que ela não quer. Que é o que aconteceu com a gente. Nós compramos a tal da casa, ela não queria porque ela queria a amiga dela lá. Passamos na frente dela fazendo uma coisa que ela não queria, e ela nos castigou. Criou isso, e já tinha os advogados interessados de passar a tal da lei.

Durante a conversa, Margarida começa a falar de si mesma como "a Margarida". Como se fosse uma outra pessoa, e não ela mesma.

[Margarida] Você sabe por exemplo, eu já te falei que a personalidade da Margarida, o que ela fez, é tudo mentira. Nada disso aconteceu.

[Chico] A senhora fala da Margarida na terceira pessoa por quê? Por que a senhora não fala "eu"? Por que a senhora fala "a Margarida’"?

[Margarida] Você sabe por quê?

[Chico] Por quê?

[Margarida] Porque aquela Margarida lá não sou eu. Eu não sou aquela pessoa. Eles inventaram uma pessoa. Por isso que eu falo na terceira pessoa. É como… Imagina um artista qualquer, o que está fazendo o Leôncio, por exemplo, lá no Pantanal. O artista não é o Leôncio. O Leôncio é o Leôncio na novela Pantanal, certo? Mas ele, o artista, é ele próprio. Então, da mesma forma… Eles criaram essa personalidade falsa, entendeu? Que era essa Margarida aí que você está falando e você está reclamando que eu devia achar que aquela pessoa sou eu! Aquela pessoa não sou eu. Eu não sou assim. Eu sou uma pessoa da paz, do bem. Eu nunca fiz nada de ruim pra aquela senhora que eu até gostava demais dela. Tá?

Margarida afirma que nunca explorou ou agrediu a empregada. Que as evidências são criações do FBI. E eu passo a questioná-la com cada uma das provas de que aquela pessoa vivia em condições análogas à escravidão.

[Chico] E o tumor que ela tinha? Porque ela tinha um tumor do tamanho de uma bola de futebol, que obrigou a retirada do útero por falta de atendimento médico. Isso também foi uma criação do FBI?

[Margarida] Não. Vou dizer o que aconteceu sobre esse tumor, que é uma imbecilidade total nessa história e você vai ver porque é. Esse tumor, é… como é que é o nome dele mesmo? Você lembra?

[Chico] Não.

[Margarida] Não lembra. Mas é uma coisa benigna que dá e o médico que viu ela, aqui no Brasil e lá, sabia que era uma coisa benigna, que agora eu esqueci o nome. Esse tumor se alimenta pelos vasos sanguíneos e pelos hormônios da pessoa, entendeu? Então uma mulher, principalmente as negras, isso foi me dito, que as mulheres de raça negra têm maior tendência a ter esse negócio, entendeu? Na barriga. E ele é alimentado então pelos vasos sanguíneos e pelos hormônios femininos da mulher. Quando a mulher entra na menopausa, aquilo regride e vai embora sozinho. Mas no caso dela, atendimento médico, isso daí é fundamental, é importantíssimo, você vai ver o absurdo da história… Ela foi atendida medicamente lá, foi levada ao médico lá pra ver isso direitinho e ela não queria se operar de jeito nenhum. Por mais que se falasse pra ela operar, ela não queria. Devido a esse fato que eu acabei de te contar, que quando a pessoa vai ficando mais velha, né, os hormônios param de alimentar o tal do tumor e ele regride e ele era benigno, não era um câncer não. Isso eu sei que não era. Mas esse tumor ele regride.

O que ela fala não é verdade. O tumor que a empregada tinha era um fibroma uterino. Um tumor benigno, que de fato não é câncer, mas é formado por células que crescem descontroladamente. A Justiça americana afirma que eram sete tumores. E o maior deles tinha chegado ao tamanho de uma bola de futebol. Por mais que não sejam câncer, esses tumores podem causar dor, anemia, infertilidade e hemorragia. A pessoa que trabalhou para Margarida relatava todos esses sintomas. E, nos casos em que um tumor benigno provoca dor, incômodo, ou inchaço que pareça uma gravidez, os médicos recomendam, sim, a retirada do tumor. Eu ouvi dois médicos que afirmaram que um tumor do tamanho de uma bola de futebol não sumiria sozinho.

Margarida também nega outra evidência do processo. Ela afirma que a funcionária foi, sim, levada ao médico, ao contrário do que a empregada disse em testemunho. O FBI também não encontrou nenhum registro de que a funcionária tenha sido levada ao médico para tratar os tumores. Vale lembrar que, anos antes, ela ficou com um corte na perna por meses, e só foi levada para o hospital quando a ferida tinha infeccionado e as bactérias já chegavam ao osso.

Contrariando a investigação da polícia federal americana, Margarida diz que a funcionária recebeu, sim, tratamento médico. Mas que os prontuários sumiram porque o advogado do ex-marido dela os entregou para o FBI. E ela acusa a polícia federal americana de ter dado fim nessas evidências.

[Margarida] Ele deu todas as provas para o FBI. E o FBI pegou e fez isso, sumiu com tudo e depois disse que não existia. O que é uma grande mentira. Outra coisa importante é que eu comecei a falar e você começa a fazer perguntas, interrompe. Isso não dá certo.

Eu a interrompo porque às vezes ela fala por mais de sete minutos sobre o mesmo assunto. Se repete. E diz coisas que me parecem improváveis, como que o FBI se uniu a uma máfia de advogados para inventar que uma dona de casa brasileira agredia a empregada. E eu a interrompo porque têm perguntas claras que precisam ser respondidas.

[Chico] A senhora agredia a … [bipado]?

[Margarida] Oi?

[Chico] A senhora agredia a … [bipado]?

[Margarida] Nunca na minha vida eu agredi a … [bipado]. Nunca, jamais, em tempo algum. Eu gostava demais dela. Quando eu era pequenininha, tinha uns nove anos de idade, ela era mais velha, ela brincava comigo. Eu gostava dela. Eu tinha carinho por ela.

Margarida diz que nunca foi citada pela polícia ou pela Justiça. Isso não é verdade.

[Margarida] Eu nunca fui citada.

[Chico] A senhora foi citada e procurada. A senhora ficou na lista de procurados do FBI. Agora eu agora quero saber por que a senhora veio pro Brasil e nunca voltou pra responder por essas acusações nos Estados Unidos.

[Margarida] É isso que eu vou te contar! Eu quero te fazer essa pergunta aí. Você acabou de falar uma novidade pra mim que eu nunca soube. Você acabou de dizer assim: "A senhora foi procurada pelo FBI" e ficou aonde? Numa lista? Que lista? Fala pra mim.

Ela afirma que não fugiu do julgamento. Que veio para o Brasil em 1998 porque sempre voltava ao país.

[Margarida] Desde oitenta e dois, eu vinha pro Brasil todo ano antes do Natal, entendeu? E um tempo antes, lá pelo dia dez, seis de dezembro. Varia, né? Variava, dependendo do ano. E eu vinha passar o Natal com a família, porque o Natal era muito, eu vou dizer assim, movimentado (risada), tinha muitos lugares pra ir entre o dia vinte e quatro e o dia vinte e cinco, era uma delícia estar com a família. Aí eu passava de seis a oito meses aqui no Brasil. Eu ficava desde o Natal até julho, agosto, setembro… E ficava aqui.

Ela diz que, enquanto isso, a empregada ficava sozinha com Renê na casa americana.

[Margarida] Eu ficava aqui no Brasil a maior parte do tempo. Então, ela tinha a chave da casa. Entendeu? Ela ficava com a casa pra ela. Ela fazia o que ela queria lá. Dentro da casa. Todos esses meses. E ele o dia inteiro fora. A única coisa que suponho que ela fizesse, porque eu não estava nem lá, era comida pra ele, sabe? E lavar roupa. Suponho eu. E porque ele mesmo lavava muito da roupa dele, que eu saiba.

Eu pergunto desde quando a ex-empregada trabalhou para a sua família.

[Margarida] Justamente. Ela começou quando eu tinha nove anos de idade. A gente brincava de queimada, pegava varetas, dominó, você entendeu? De bola no quintal. Ela era muito mentirosa. Então veio já muito mentirosa. Então, ela supostamente tinha que limpar a casa. Só que ela não limpava a casa. A gente ficava brincando. Quando a minha mãe perguntava "Ah você limpou a casa? Você fez isso?" "Fiz!". E eu só ficava olhando. Era pequena, né? Que que eu ia fazer? Entendeu? Eu ficava só vendo aquilo. Mas a gente lembra. Entendeu? (risada) Ela tinha esse péssimo hábito da mentira. E isso continuou a vida inteira, por todo o tempo que eu tive contato com ela. Mas a gente brincava, ela era minha amiga. Sim! Era. E que que eu posso dizer? Ninguém pode mudar o que aconteceu.

Então, quando Margarida e Renê se mudaram para os Estados Unidos, fazia mais de 20 anos que a empregada já trabalhava na casa dos pais dela, que hoje chamo de casa abandonada.

Eu pergunto por que a funcionária se mudou junto com eles. Margarida diz que tinha reumatismo, que as dores limitavam sua capacidade de cuidar de uma casa. E que por isso não queria se mudar para os Estados Unidos. Então, o marido convidou a empregada para ir junto, assim Margarida não precisaria fazer tarefas domésticas.

[Margarida] Então eu falei: "Olha aqui, eu não quero ir para os Estados Unidos. Eu não tenho condição de fazer coisa nenhuma e eu não vou. Não tenho condições! Não quero". Aí ele queria demais, né? Esse Renê, queria muito. E aí ele pediu lá. Acho que pediu pros meus pais pra que ela fosse.

Margarida afirma que teve outras empregadas no Brasil. E que todas tinham carteira assinada. Mas que, quando foi para os Estados Unidos, a empregada dos seus pais foi mais no papel de amiga do que no papel de uma funcionária.

[Margarida] Eu enxergava ela como uma criança grande, entendeu? Sempre. Aí eu cresci, tudo. O sonho da minha vida era ter ela comigo sempre. E eu não tinha, porque ela não era minha empregada. E quando eu fui pros Estados Unidos, eu não queria ir pros Estados Unidos. Eu morava fora de São Paulo, eu queria voltar para São Paulo para ficar com meus pais. Eu sentia muita falta dos meus pais, entendeu?

Ela insiste que não sabia se a empregada ganhava ou não salário. Diz que o pagamento era função de Renê. E que ela estava no Brasil por coincidência quando a empregada saiu da casa e a denunciou.

[Margarida] Realmente eu estava aqui em abril, era noventa e oito, não é isso?

[Chico] Isso, mil novecentos e noventa e oito.

[Margarida] Eu… eu… eu lembro que eu estava aqui. Eu não lembro se ele estava ou não estava, mas eu lembro que eu estava. Aí eu me lembro muito bem que ele voltou pra lá em algum momento, não sei qual, ele voltou pra lá e aí ele ligou dizendo que a … [bipado] tinha ido embora, porque lá na frente dessa casa lá, né, ela tinha na frente da porta um buraquinho para o correio, entendeu? O carteiro punha a carta e caía no chão assim. Logo atrás da porta por dentro. Ela enfiou a chave da casa lá. Entendeu? Quando foi embora. E deixou aquilo uma bagunça. Deixou uma bagunça a casa inteira. O quarto dela, as coisas dela. Ele disse que tinha… porque ela era gorda e ela não… quer dizer, ela não deveria, né, comer muuuito doce, mas ela era gulosa, então tinha uma montoeira de doce, de comida, sabe, de resto? Ela largou lá, porque ela tinha o porão inteiro pra ela. Ela tinha o andar inteiro pra ela, tá? E o porão lá nos Estados Unidos, eles chamam de basement, é o lugar onde os jovens ficam. Os jovens têm seu quarto lá. Não é uma coisa que nem um porão qualquer. É um lugar que era acarpetado, arrumadinho, direitinho. E ela tinha aquele andar inteiro pra ela. Então diz ele, né? Porque eu não estava lá, eu estava aqui, que ela fez essa bagunça enorme, tinha um monte de doce, e o que ele ouviu dizer é que ela tinha passado mal, do estômago e, sei lá, vomitado, sei lá o que, e foi levada pro hospital. Mas ela passou mal porque ela comeu demais desses doces, entendeu? Pelo que ele contou ali, é uma coisa que a gente deduz, certo?

[Chico] Não era o tumor que ela tinha crescendo há anos na barriga dela, então era doce que ela comeu demais?

[Margarida] Não, não! Eles usaram o tumor para dar uma… como é que chama? Aquele sensacionalismo, entendeu?

O registro oficial do FBI é que a empregada estava vomitando sangue por causa do tumor.

[Chico] Era um tumor do tamanho de uma bola que obrigou os médicos a tirarem o útero dela inteiro e ela ficou quase um mês internada depois dessa cirurgia. Não era uma coisa jocosa como a senhora dá risada.

[Margarida] Eu não estou dando risada de forma nenhuma! Porque eu gosto demais de coisas de saúde. E eu tenho um respeito por tudo que é coisa de saúde. Inclusive dela, de jeito nenhum jocosa! Nem faça essa interpretação de mim, porque não tem nada de jocoso não, viu?

A entrevista fica tensa.

[Margarida] Por gentileza, Francisco, calma. Parece que você está até brigando, coisa esquisita. Isso aqui não é um caso de briga.

[Chico] Isso é só uma conversa, só que eu preciso apurar a verdade, eu preciso apurar o que de fato aconteceu. E quando as coisas parecem se desviar da verdade ou se nega uma coisa que eu de fato já comprovei documentalmente, eu preciso confrontar isso. É só uma conversa. Uma entrevista é uma valsa, é uma conversa.

[Margarida] Confronta com calma, está bom assim?

[Chico] Eu sou calmíssimo.

Eu respiro fundo e pergunto, objetivamente: por que a senhora não voltou aos Estados Unidos para responder à Justiça que a procurava?

[Margarida] Falei: "Olha, então, já que eu não posso ir…. Eu estou com esse sangramento. E já que vocês não podem adiar essa coisa aí, que vocês tem que me escutar, né?" Aí eu falei "O senhor pode falar comigo agora no telefone. Eu respondo o que o senhor quiser." E aí ele me entrevistou por telefone. E eu falei as coisas do jeito que era, entendeu? Falei. No final do telefonema esse senhor falou pra mim: "Olha, a senhora me surpreendeu. Porque nunca vi ninguém que viesse atrás do FBI para poder conversar como a senhora fez comigo. Porque todo mundo foge da gente." Ele falou. "Mas a senhora tomou a iniciativa, mesmo estando sangrando e tudo, de explicar a situação que não pode vir aqui, né, aqui nos Estados Unidos. Então a senhora me ligou".

[Chico] E a senhora não voltou depois de uma melhora de saúde, por quê? Porque a senhora nunca mais voltou e a senhora nunca respondeu as acusações.

[Margarida] Olha, eu vou te dizer uma coisa. Eu tenho a saúde, tinha e continuo tendo, a saúde delicada. Tá? Quando eu vi esse negócio, porque ela foi mesmo. A minha mãe foi para testemunhar no julgamento, foi mais pessoa da família, que era advogada, que eu te contei e ela falou, porque isso a gente guarda: "Isto são cartas marcadas". Como dizendo: não importa o que se fala, eles vão dizer o que eles querem e acabou. É isso que vai ser.

Eu volto a perguntar se a empregada tinha salário e a liberdade respeitadas.

[Margarida] Da minha parte, tudo bem, porque eu dava muita liberdade pra ela. Além de eu ficar de seis a oito meses no Brasil e ela sozinha, portanto, eu jamais poderia ter mantido ela como escrava, análoga à escrava, porque eu estava aqui. E ela estava lá. Com a chave da casa, entendeu?

Margarida ilustra a liberdade da empregada dizendo que ela podia entrar e sair de casa. E que levava o cachorro para passear.

[Margarida] Primeiro, por exemplo, o fato dela estar sozinha na casa por meses, com a chave da casa. Quando a gente estava lá, ela tinha também, sempre teve a chave da casa, porque era a chave dela. Cada um tinha a sua chave lá da casa. Levava os cachorros pra passear, voltava quando queria, ela era super livre. Muito pelo contrário. Mas foi essa Vic Schneider que fez isso, entendeu?

[Chico] E ela recebia salário?

[Margarida] Oi?

[Chico] Ela recebia salário?

[Margarida] Então, lembra que eu estava te contando antes? Agora há pouquinho, que aqui no Brasil eu que tratava com as empregadas e todas elas tinham carteira assinada, lembra?

[Chico] Sim. Sim.

[Margarida] Que eu assinava e tudo. Então, como eu fui pros Estados Unidos sem querer ir, eu falei "Eu não vou fazer nada. Não faço nada de nada". Então nada de nada incluiu não mexer nesse assunto de empregada.

Margarida afirma que vivia com dor. Ela passa mais de sete minutos falando de si. Da doença dela. De como tomar cortisona deixava o rosto inchado. E eu tento voltar para o assunto da entrevista.

[Margarida] Então é um dos efeitos colaterais dela, além de deixar com aquela cara de lua, uma cara gorda assim, sabe? Retenção de água.

[Chico] E nesse período a senhora não sabia se ela recebia salário ou não? Isso nunca foi dito?

[Margarida] Ah, então, pois é! O que acontece é que eu não sabia. Como eu não queria, eu fui pros Estados Unidos com a condição. Eu tava peremptoriamente, e até hoje você está vendo eu falar, porque eu não falo do jeito peremptório normalmente, mas eu estava perentoriamente, não queria fazer N-A-D-A. Eu estava mal de saúde, eu ia cuidar da minha saúde, queria sarar do que eu tinha, que eu não aguentava mais de dor, eu não pude aceitar uma oferta de emprego, não só porque ele queria ir embora pra lá, como eu não tinha condições, tá, de ficar trabalhando, porque eu não aguentaria de dor. Porque eu não aguentava de dor! Era horrível, tá? Vivia com dor dia e noite, era ruim demais. É muito triste. Aí eu não quis nada. Eu nunca soube nada. Eu ignorei tudo, tudo, tudo. É como se o Renê fosse meu pai. Pra falar assim, bem explicitamente, ele não era o marido. Ele era como um pai. Ele mandava em mim, falava o que eu podia fazer, o que eu não podia fazer, e ele me tratava como uma filhinha. E era isso a minha vida, tá? Com esse senhor aí.

[Chico] Durante vinte anos você conviveu com essa pessoa, durante quase vinte anos, e você nunca soube que ela não recebia um salário e que ela tinha problemas de saúde?

[Margarida] Não, não, não, não. Nunca soube. Porque eu estava doente. Eu tinha meus problemas de saúde e eu estava indo pros Estados Unidos sem querer ir. E uma condição, uma das condições que eu fui pra lá, era não tratar de problema nenhum.

Margarida afirma e repete que nunca soube se a empregada ganhava salário ou não.

[Margarida] O que eles pensaram que, porque eu era casada com o Renê, eu tinha obrigação de saber das coisas que ele fazia, mas eu não sabia, você entendeu? Eu não sabia. Posteriormente, aqui no Brasil, que eu gosto muito de televisão, inclusive eu te contei que eu gosto muito da Globo tal, eu percebi que tem muitos casos onde essas mulheres lá, mulheres desses caras ricos, né, que se metem, eles, os caras, se metem em confusão, elas não sabem de nada. E eu até acredito. Porque eu não sabia de nada. A mulher vai viver a vidinha dela lá. Elas viviam a vida delas, sociais, sei lá o quê. Eu vivia a minha vida tentando melhorar a minha saúde…. E pronto, ficava por isso.

[Chico] Mas eu preciso insistir. Eu preciso insistir aqui numa pergunta, porque a senhora conviveu vinte anos com uma pessoa que a senhora convivia desde criança e chamava de amiga. E durante vinte anos você nunca soube que essa pessoa era explorada e era submetida a condições análogas à escravidão?

[Margarida] Mas era não era! Ô menino, ô, Francisco. Ela não era. Ela era livre. Ela fazia o que ela queria. Ela tinha chave da casa, ela ia onde ela queria. Não era uma coisa, nada de escravo, gente. Não era. Isso daí foi tudo manufaturado. Foi inventado, entendeu? Esse treco aí.

[Chico] Ela recebia salário, volto a perguntar, ela recebia salário?

[Margarida] Olha, eu não sei porque eu nunca soube de nada o que acontecia na vida entre ela e o Renê. Ele que cuidava do dinheiro, ele que trabalhava.

[Chico] Mas a senhora convivia com ela, a senhora conviveu com ela por quase vinte anos. Nunca se importou de saber que essa pessoa não recebia salário?

[Margarida] Gente! Eu vivia com ela no dia a dia dentro de casa! Eu vivia com ela no dia a dia! Ela era, na verdade, a minha melhor amiga, se você quer saber, tá? Naquela circunstância né, de morar lá fora, naquela ocasião, porque os americanos são muito fechados e eu também não tinha, sabe, assim… eu gostava dela! O que você quer que eu faça? Ela não era minha amiga de criança? A gente não brincava como criança? Não mudou nada. Era igual. Você entendeu? Era igualzinho quando era pequena.

[Chico] A senhora acabou de chamar ela de melhor amiga. A senhora nunca soube que sua melhor amiga trabalhava sem ganhar salário por vinte anos e sem ter o documento legalizado depois de mil novecentos e oitenta e quatro e em condições análogas da escravidão? É só isso que me parece improvável, por isso eu insisto nessa pergunta

[Margarida] Então deixa eu te dizer uma coisa sobre documentos e sobre o FBI. Porque eu acho que isso é importante. Quando eu soube, que eu não estava lá, que o Renê foi citado para ele ir não sei aonde lá dar umas informações, eu soube disso, eu estava tendo sangramento vaginais entendeu? Profundos. Eu estava de cama, muito fraca, não podia sair da cama. Mas EU, eu, liguei pro FBI. Eu fiz isso, está bom? Liguei pro FBI e falei com esse senhor aí que é o que tinha me entrevistado lá, chamei ele, falei pra ele: "Olha, meu senhor, eu não tô podendo ir aí agora, eu estou com esse sangramento. Será que vocês podem adiar essa coisa aí?" Que agora eu não lembro o nome, entendeu?

[Chico] Um inquérito, uma investigação.

[Margarida] Que eles queriam escutar o Renê e queriam escutar eu. E eu não lembro o nome da coisa. "Vocês podem adiar isso? Que daí quando eu melhorar eu vou. E falo o que vocês quiserem. Vocês podem perguntar o que vocês quiserem. Não tem problema nenhum. Falo."

No meio da entrevista, ela pede que eu faça uma previsão.

AMDCA - Margarida Bonetti Entrevista 01:31:50

[Margarida] E uma outra curiosidade. Se eu nunca tivesse ido lá tentar salvar a árvore, não estivesse lá, se a gente não tivesse se encontrado. E o homem, sei lá, eu, é um homem, né? Que parece que falou com você nesse assunto, não tivesse falado essas coisas, nada disso estaria acontecendo?

[Chico] É especulação, não tem como saber.

[Margarida] Por quê?

[Chico] Pô, porque eu não sei o que aconteceria se a gente não tivesse se cruzado aquele dia. E se a gente se cruzasse um outro dia, e se minha curiosidade nascesse de outra maneira, eu já era curioso em relação à casa. Então não dá pra eu dizer "não, isso não teria acontecido". Eu não consigo especular um futuro que não aconteceu.

Eu digo que, mesmo antes de encontrá-la protestando contra a remoção de uma árvore, eu já tinha curiosidade sobre a casa abandonada.

[Margarida] E por que você era curioso em relação a essa casa?

[Chico] Porque é uma casa abandonada no meio de um dos bairros mais ricos do Brasil, com uma pessoa morando dentro.

[Margarida] É, só um pequeno detalhe. Ela não está abandonada, tá? Ela vai ser restaurada e vai ficar bonita, tá?

[Chico] Quando?

[Margarida] (suspira) Quando Deus quiser e permitir que isso aconteça. É o que eu mais quero que aconteça, tá?

Eu pergunto para Margarida se ela assinaria um documento de venda da casa, porque chegou uma proposta de dez milhões de reais pelo imóvel.

[Margarida] Pois eu vou dizer uma coisa, meu querido, esta casa pertence a mim, tá? E eu não vou vendê-la para ninguém por nada deste mundo. Entendeu? Esse é o desejo do meu pai, é o desejo da minha mãe, e eles sabiam que eu sou a única pessoa nesta família que vai manter essa casa exatamente como ela é. E é isso que eu vou fazer. Está bom?

Então, ela tenta me demover mais uma vez de citar o nome dela na reportagem.

[Margarida] Por isso que eu gostaria e estou te pedindo, por gentileza, se você pode me deixar de fora, porque nem legalmente eu fiquei envolvida.

[Chico] A senhora ficou procurada, a senhora ficou como foragida, a senhora é citada no processo e a justiça americana, um tribunal do júri, considerou o Renê culpado por todos os crimes e considerou que houve sim trabalho análogo à escravidão, houve sim agressão, houve sim tudo isso e a senhora só não foi julgada porque a senhora estava fora de território americano. Então não. Não vou deixar de fora.

[Margarida] Eu não fui julgada.

[Chico] Por estar fora do território americano, justamente por isso.

[Margarida] Claro!

[Chico] Mas sim, houve denúncia, a senhora foi suspeita, a senhora ficou foragida, a senhora foi procurada pela polícia. Então não é que a senhora não tem envolvimento, a senhora não pode dizer isso, não é verdade.

[Margarida] Vou dizer uma coisa, eu não fiquei foragida porque eu estava cuidando da minha mãe aqui e depois eu estava com problemas de saúde que me impediam de viajar. Eu não podia piorar a minha situação. Como é que eu vou testemunhar, fazer alguma coisa, se eu não consigo nem ficar de pé? Eu não conseguia ficar de pé. Eu estava sangrando muito.

[Chico] Hoje em dia a senhora anda pela rua, hoje em dia a senhora tem autonomia, hoje em dia a senhora conseguiria pegar um avião e responder aos crimes de que foi acusada.

[Margarida] Pra que eu iria abrir uma coisa que já foi fechada? Uma mentirada que já foi fechada?

[Chico] Não foi considerado mentira pela justiça americana. Foi considerado que houve sim crime, essa pessoa era explorada numa situação análoga à escravidão. Isso foi a justiça americana que considerou, não fui nem eu.

Margarida afirma que, quando Renê mudou de emprego, em 1984, ela insistiu para que ele regularizasse o visto da empregada. O que nunca foi feito.

[Margarida] Que pra mim isso é uma tragédia, porque inventar que eu era um monte de pessoas, que fazia um monte de coisas, né, que eu nunca fiz na minha vida, nem pensei em fazer isso. Pra mim é uma tragédia, tudo isso é uma tragédia. Tudo isso que aconteceu é uma tragédia na minha opinião. É um tsunami realmente. Aí, ah, eu falei pra ele. Eu tive a oportunidade de falar isso pra ele. "Você viu que eu te avisei, eu pedi, eu implorei pra você deixar a … [bipado] legal. E você se recusou e ela ficou ilegal lá. Olha tudo o que aconteceu. Se você tivesse colocado ela legal, pelo menos isso, eles não iam poder falar nada porque ela estava legal." Ele falou "é..." Tá? Só pra você saber. Ele era muito burro, muito imbecil. Tá? Esse homem aí. E então é isso. Essa é uma coisa que, sim, eu soube, falei, avisei, pedi, implorei. E ele não quis fazer. E eu não tinha como fazer. Então ficou sem fazer. E olha no que deu.

Ela para de falar da história dela e questiona o quanto vou ganhar para fazer esse podcast.

[Margarida] Mas olha, eu estou muito triste. Você vai ganhar quanto pra ficar publicando essa coisa horrorosa de novo?

[Chico] A senhora está perguntando meu salário?

[Margarida] Não, só que você vai ganhar da Folha né, com esse caso aí…

[Chico] Não é o caso. Não é o caso de eu compartilhar essa informação com você. Por que a senhora quer saber disso?

[Margarida] Por causa do seguinte. Eu quero te dizer uma coisa. Você está chutando o cachorro morto basicamente, tá? Porque no caso é uma coisa triste, horrorosa que aconteceu e você está revivendo e é muito triste que você esteja fazendo isso. Realmente é muito triste. Eu realmente, sei lá, gostaria de pedir pra você desistir disso, por favor.

[Chico] Não.

[Margarida] Arruma dinheiro de uma outra forma boa. Qualquer coisa boa que possa estar acontecendo por aí, afora, mas não com uma tragédia que já aconteceu há vinte e dois anos.

[Chico] Essa história fala muito do Brasil, essa história fala do Brasil até hoje, essa história não morreu, essa história é muito maior do que só a senhora, essa história fala dum país inteiro. E é por isso que eu vou contar essa história, mesmo você tentando me dissuadir de conta-lá.

A conversa chega à segunda hora. E, de tanto em tanto tempo, Margarida frisa que é inocente.

[Margarida] Ah, vou te dizer uma coisa, Francisco. A … [bipado] nunca foi tratada semelhantemente a escravo. Olha, eu só espero que você seja honesto e realmente fale a verdade no que se refere a mim. Porque eu não soube de nada disso. Eu não sabia nada sobre ordenado. Nunca entrei nisso. O que eu soube é o que eu te contei sobre ela ser ilegal que eu implorei muitas vezes pra ele. Cheguei a brigar com ele por causa disso. E por ele não fazer nada. E eu não tinha como resolver o assunto. Agora eu sei que aqui no Brasil existem esses bolivianos, essas coisas aí tristes, que eles tratam mal, como escravos. Não era o caso dela de forma nenhuma, tá? Eu te afirmo com toda a veracidade que não era o caso dela. A … [bipado] era tratada bem. Ela tinha um… um andar inteiro só pra ela. Ela tinha a chave da casa, ela saía, esses escravos que tem aí, os bolivianos, né, que a gente escuta, os que costuram, não sei o quê. Eles ficam presos no lugar, eles trabalham lá nas máquinas de costura, dormem, comem e ficam presos ali. É totalmente diferente. Ela comia no andar térreo, né? Como todo mundo. Comia no térreo. Ela tinha os aposentos dela lá como todo mundo nos Estados Unidos, os adolescentes têm, você deve saber porque você é um cara informado, que os adolescentes gostam de ficar com privacidade, né? Eles ficam no basement.

[Chico] A geladeira ficava trancada com o cadeado e os armários de comida da casa eram trancados com cadeado?

[Margarida] Não. Isso era mentira. Não tinha nada de cadeado.

[Chico] O FBI constatou isso, tem documentação, tem inclusive imagem.

[Margarida] É… o FBI. Eu já te falei que o FBI pegou os documentos de saúde dela…

[Chico] Tudo bem. Não, tudo bem. É informação da polícia federal americana contra a versão da senhora. As duas versões vão estar contempladas, pode ficar tranquila.

[Margarida] Vem cá, você não assiste filme não? Eu assisto filme, eu gosto de filme de ação. E muitos desses filmes de ação mostram muito bem o FBI, que eles fazem acordos com pessoas, porque eles têm interesse deles e das pessoas de conseguirem alguma coisa, que no caso era a tal da lei que realmente eles conseguiram passar. Ha ha ha. Eles conseguiram o que eles queriam, eles tinham esse interesse de acordo, o FBI. O FBI não é um pessoal, ai maravilhoso, super honesto, não é. Se você, está na Globo, se você assiste as coisas de FBI, filme de ação, você sabe muito bem que o que eu estou falando é a mais pura verdade, porque os filmes nada mais são, muitos deles, do que a representação da realidade, tá? Então essa foi a realidade nesse caso.

Depois de expor a versão dela dos fatos, que muitas vezes entra em conflito com o que foi apurado pelo FBI e apresentado à Justiça americana, Margarida me faz um pedido.

[Margarida] Eu ainda continuo pedindo, tá? Por favor, pelo que há de mais importante pra você, não faça esse trabalho. Deixa passar. Ah, não vale a pena. Eu fiz toda essa investigação. É verdade. Mas eu recompenso vocês da Folha, por outra coisa, faço outro trabalho, o que seja. Se você botar a mão na sua consciência e ver que realmente foi uma coisa criada. Ou você simplesmente não faz e não apresenta, ou você, se apresentar, conta a verdade. Que eles tinham esse interesse em passar essa lei que realmente de fato você investigou, eles passaram, eles criaram essa situação toda desse caso pra conseguir subsídios para passar essa lei. Era um interesse de muitas pessoas lá nos Estados Unidos, pessoas diferentes, de grupos diferentes. Entendeu? E aí eles conseguiram passar a tal da lei e usaram esse caso que é brasileiro. Assim como usaram outros.

Eu digo a ela que o podcast vai sair. E que a entrevista dela será um episódio, para que o lado dela seja contemplado. Por mais que a versão seja contraditória.

Depois de duas horas e meia de conversa, meu celular está prestes a morrer por falta de bateria.

[Chico] Eu preciso desligar, porque minha bateria está acabando. Margarida Bonetti, agradeço por essa entrevista, ela foi gravada e eu vou usar trechos dela na série. Se tiver mais informação, peço que você me procure até sexta-feira, estou com essa abertura, estou à disposição, mas agora eu preciso desligar, porque eu realmente não esperava essa ligação e agora minha bateria está em um por cento, ela vai acabar a qualquer momento.

[Margarida] Está bom.

[Chico] Obrigado, um abraço. Bom fim de semana.

[Margarida] Para você também. Tchau tchau.

Eu desligo o telefone. E vou descansar, depois de 72 horas rondando a casa abandonada em busca da entrevista que acaba de terminar.

VINHETA DE TRANSIÇÃO

Meu telefone toca de novo, horas depois da entrevista. É Margarida. Eu não atendo. Depois de três dias na frente da casa abandonada e de uma entrevista de duas horas e meia, eu me dou o resto do domingo de folga. Penso em retornar a ligação no dia seguinte, segunda-feira, em horário comercial. Mas ela prefere não esperar: liga cinco vezes seguidas e deixa um recado de voz para cada ligação.

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Aqui vai seu primeiro recado.

[Margarida] Oi, Francisco. Eu decidi gravar, porque já que você gosta de gravar as coisas. Eu estou com muita dor no corpo, e de tristeza que está se expressando fisicamente, entendeu?

Ela continua falando por mais de cinco minutos sobre como relembrar o passado fez mal fisicamente a ela. Até que o recado é cortado por alcançar o tempo máximo permitido.

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Próximo recado.

No próximo recado, ela diz que ligou por uma razão prática. Para enfatizar quatro pontos da entrevista.

[Margarida] Eu estou te ligando porque tem quatro pequenos pontos que eu acho que são muito importantes pra você, de falar com você. Eles são rápidos, dá pra falar rapidamente e por isso eu estou te ligando.

Ela divide cada ponto em um recado de voz. O primeiro ponto é que ela não sabia que a mulher que chamava de melhor amiga e com quem viveu por 20 anos, vivia em condições análogas à escravidão.

[Margarida] O primeiro ponto é o seguinte. Ele era como um pai pra mim, como eu te contei. E a gente não fica perguntando para pais sobre a vida, as coisas monetárias, entendeu? Não pergunto nada. Ninguém pergunta nada. Eu nunca perguntava pra ele nada.

[Margarida] Ele me dava dinheiro e eu achei que ele dava dinheiro pra ela porque eu via ela com dinheiro, entendeu, na mão.

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Se quiser apagar esse recado, digite cinco.

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Próximo recado.

O segundo ponto é sobre… lealdade canina.

[Margarida] E por que eu gosto de cachorro? Meus cachorros são bons, honestos, fiéis. Eles não traem ninguém, como essa essa mulher. Ela fez uma grande traição.

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Próximo recado.

O terceiro ponto é um pedido, que eu não devo incluir a casa abandonada no podcast.

[Margarida] Se você quiser dessa forma, por isso que eu estou te pedindo pra não fazer, por favor, por gentileza. Pelo que você mais preza na sua vida, que seja importante, não relacione essa casa com esse caso horroroso dessa … [bipado]. Por quê? Porque, primeiro que a coisa nem aconteceu aqui. Aconteceu lá longe. Mas se você relacionar com essa casa, você vai estar jogando piche na casa. Você está sujando a casa. Você entendeu? Então, você vai estar tornando muito mais difícil eu permanecer nesta casa, defendendo essa casa. Eu estou defendendo ela. Ela está sendo defendida por mim com unhas e dentes pra que ela continue ELA, íntegra como é, que seja restaurada, continue como é, bonita, como é.

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Próximo recado.

O quarto ponto é a máfia que ela acredita ter descoberto, formada por advogados e congressistas americanos. Ela tenta me convencer a contar uma história diferente. Em vez de falar sobre a brasileira que foi acusada de crimes nos Estados Unidos e fugiu, ela acha que o tema dessa série tem de ser a máfia que ela diz existir.

[Margarida] Porque esse caso aí é um caso velho. É um caso requentado. Tá? É, isso é a verdade dos fatos. Mas a ideia, é a coisa nova que eu quero te falar, se você realmente quiser fazer esse podcast, que eu ainda tenho esperança que você desista disso, é o seguinte. Esse fato de que eles queriam passar aquela lei que você me contou que conseguiram, eles usaram os três, o casal e ela pra conseguir isso. Tá? Usaram. E conseguiram. Eles fizeram uma manipulação tremenda. Começou com uma vingança da tal da Vic Schneider e grandes interesses e não era pouco dinheiro, era muito dinheiro e muito interesse. Era coisa de cachorro grande ali, tá?

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Próximo recado.

VINHETA DE ENCERRAMENTO

Depois de expôr os quatro pontos, ela diz que é a última vez que vai falar sobre esse assunto. Sobre os crimes de que foi acusada, mas pelos quais nunca foi julgada.

[Margarida] Pra minha própria, como eu vou dizer assim, sanidade mental e tentar… Porque me deu muita tristeza falar de todo esse assunto, tá? E está me fazendo mal fisicamente, que eu estou com dor no corpo todo… Eu vou tentar esquecer tudo isso. Eu vou desligar o telefone aqui e vou tentar tirar todo esse assunto da minha cabeça e não pensar mais nisso. Acabou.

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Você não tem mais recados novos.

Se você sabe, ou desconfia, que uma pessoa tem seu trabalho explorado. Denuncie. Dá para fazer uma denúncia anônima à Secretaria Especial da Previdência e Trabalho num site. É um formulário simples e rápido. Só precisa do endereço da ocorrência e de um relato breve do que está acontecendo. Assim, fiscais podem ir até o lugar e avaliar a situação. O site para fazer a denúncia, que pode ser anônima, é o seguinte: ipe.sit.trabalho.gov.br. O link também está no texto de descrição desse episódio.

FIM DO EPISÓDIO

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