Paulistana torturada na ditadura investiga se seu pai foi agente da CIA

Escritora, Karen Keilt se mudou para os EUA após ser presa em casa com o marido em 1976

A escritora Karen Keilt, 65, que foi presa e torturada na ditadura
A escritora Karen Keilt, 65, que foi presa e torturada na ditadura - Arquivo Pessoal
Glenda Mezarobba
São Paulo

Em 2013, Karen Keilt enviou uma mensagem à Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão criado para apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre setembro de 1946 e outubro de 1988 no Brasil. 

Nela, a paulistana que hoje vive nos Estados Unidos dizia que em 19 de maio de 1976, aos 23 anos e recém-casada, dormia em sua casa, em São Paulo, quando foi brutalmente acordada “por homens armados, falando que iriam nos levar para a cadeia, por tráfico de drogas”. 

Sem explicação ou justificativa, ela conta, o casal foi levado à força para o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). 

“Fomos espancados e torturados no pau de arara. Fui vítima de violência sexual.” Deixaram a cadeia 45 dias depois. “Meu marido nunca mais andou sem o auxílio de uma bengala. Em 2001, se matou. Jamais conseguiu esquecer o horror que passamos.”

Nesta entrevista, concedida depois da recente divulgação de documentos da CIA (agência de inteligência dos EUA), envolvendo os generais Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo e a política de extermínio na ditadura militar (1964-1985), Karen —hoje com 65 anos— conta como a necessidade de sobreviver e de lidar com o horror daquele período se transformou em esforço em prol da verdade.

Karen Keilt com o pai, Frederic Birchal Raborg, no casamento dela, em janeiro de 1976, quatro meses antes de ser presa
Karen Keilt com o pai, Frederic Birchal Raborg, no casamento dela, em janeiro de 1976, quatro meses antes de ser presa - Arquivo pessoal

 

Quando prestou seu testemunho à CNV, o que sabia sobre a motivação da prisão e das torturas, sofridas por você e seu marido?

Não podia imaginar por que eles nos levaram. Nos primeiros três dias em que ficamos juntos, no Deic, discutimos muito as possíveis razões. Chegamos à conclusão de que foi tudo motivado por dinheiro. Durante quase quatro décadas acreditei que o que aqueles homens queriam era o pagamento de resgate.

O que mudou desde então? Você fez novas descobertas?

Depois do meu testemunho, comecei a investigar mais o background do meu pai e passei a desconfiar que ele poderia ter conexões com a CIA.

Em 2014, a partir de informações recebidas do National Personnel Records Center do National Archives descobri mais sobre a carreira militar dele, nas Forças Armadas como, por exemplo, a data de seu último pagamento, na Flórida: 21 de fevereiro de 1946. Descobri também que ele fez parte da Branch Office Military Intelligence Division e que, nessa condição, se encontrou com militares brasileiros, generais e tenentes-coronéis.

Foram cinco anos de trabalho até localizar alguns documentos, como um memorando, de julho de 1965, em que o nome do meu pai aparece como um possível “man for Brazil” (homem para o Brasil).

Quais peças ainda faltam para montar esse quebra-cabeças?  

Depois que o documento da CIA com os diálogos de Geisel veio a público, em maio, encontrei na internet um arquivo que parece indicar que meu pai trabalhou até 1975 para a CIA. Já solicitei oficialmente à CIA esse arquivo. 

Como tem sido pesquisar nos arquivos norte-americanos?

Tem sido bem difícil.  Nos Estados Unidos existe um mecanismo chamado Freedom of Information Act, que assegura, a todos os cidadãos, acesso a documentos oficiais.

Em 2015, primeira vez que solicitei documentos sobre o possível envolvimento do meu pai com a CIA, recebi a seguinte resposta:  “Por razões de segurança nacional, não podemos confirmar, nem negar que Frederic Birchal Raborg trabalhou para a CIA.”

Para mim, isso soa como uma confirmação, mas ainda preciso ver escrito em algum documento quais eram os vínculos e as atividades dele. Nunca pesquisei nos arquivos brasileiros. Ainda tenho muito medo e não sei como começar.

Seu relato sugere que pode haver alguma conexão entre seu pai, multinacionais norte-americanas com atividades no país e serviços de inteligência dos Estados Unidos e brasileiros. Como você interpreta tudo isso? 

Nosso resgate, do meu marido e meu, no valor de US$ 400 mil, foi pago com dinheiro que estava em uma conta bancária, na Suíça.  

Nunca entendi de onde veio esse dinheiro. Naquela época meu pai era vice-presidente de operações da Ford. Como poderia ter tanto dinheiro fora do país?  

Durante muitos anos, na década de 60, esteve desempregado, mas mesmo assim continuamos levando uma vida de gente rica. Hoje suspeito que esse dinheiro fosse remuneração da CIA. Não sei se era salário do meu pai ou se era dinheiro a ser usado como pagamento para oficiais brasileiros que colaboravam com meu pai e a CIA, por exemplo.

Você e seu marido estiveram presos durante 45 dias, sem nenhuma acusação formal. Vocês não tinham militância política. O que aconteceu?  

Durante o tempo em que estivemos presos, os policiais insistiram para que assinássemos uma confissão por tráfico de drogas. Nos recusamos.

Meu marido foi o primeiro a ser torturado. Eu fui torturada três vezes no pau-de-arara. Recebi choques, fui espancada. Tive hemorragia e precisei ser levada de ambulância para um hospital. Não sei onde era e nem quanto tempo fiquei lá, mas lembro de ter sido algemada na cama e de uma policial ficar me vigiando.

Acredito que fomos atingidos para mostrar, ao meu pai, que ele não era todo-poderoso. Imagino que esses policiais sabiam que meu pai era da CIA e o ameaçavam.

Você chegou a procurar a Justiça?

No Brasil, nunca. Recentemente, entrei em contato com um escritório britânico. Conversei com dois advogados de lá, especialistas em violações de direitos humanos, sobre a possibilidade de iniciarmos uma ação contra o governo brasileiro, para rever a Lei da Anistia. Seria uma ação coletiva, mas como não conheço outras vítimas de tortura, o processo ainda não pôde ser iniciado.

Como tem sido sua vida desde então?

Minha vida como conhecia acabou. Meu marido virou alcoólatra e eu tentei me suicidar.  Fugi para a Califórnia com meu bebê, de 18 meses, quando o Brasil passou a lei protegendo os torturadores, em 1979. 

Estava sempre com medo e naquele momento soube que nunca mais poderia viver no país. Não sabia fazer nada, não tinha como trabalhar, mas consegui um emprego como garçonete. Quando finalmente entrei em contato com a minha mãe, ela resolveu me auxiliar. Durante muitos anos tive pesadelos e medo.

Você nunca voltou ao Brasil?

Tinha medo, mas deixei meu filho nos Estados Unidos e regressei no início dos anos 80, para assinar o divórcio. Só voltei a ver meus parentes e amigos daquela época ano passado, quando estive em São Paulo, para renovar alguns documentos.  O reencontro foi maravilhoso, mas toda vez que saí na rua, morri de medo.

O que aconteceu com seu pai?

Não tive contato com meu pai até 1985, quando ele e minha mãe se mudaram para a Carolina do Sul, onde estava morando com meu filho. Meu pai morreu em 1996, aos 86 anos de idade, depois de um infarto.

Durante os quatro dias em que esteve internado, cuidei dele no hospital. Pedi perdão, implorei que me contasse o que sabia sobre a minha prisão, mas ele nunca falou comigo sobre o que aconteceu. Minha mãe morreu um ano depois. 

Como é sua vida hoje? 

Casei-me novamente. Fui professora de hipismo e a primeira mulher, nos Estados Unidos, a ocupar o cargo de gerente geral de uma equipe de hóquei profissional. Também desempenhei funções executivas.

Hoje preparo um livro de memórias, que deve ser lançado em abril. Nunca falei com ninguém sobre minha experiência. Em 2010, resolvi que precisava limpar minha alma e comecei a falar sobre tudo.

Você escreveu um livro sobre a violência sofrida ("The Parrot's Perch", ou pau de arara, equipamento usado em tortura) e prepara esse outro, de memórias. Aonde sua busca pela verdade vai levá-la?

Espero que esta busca me ajude a trazer esperança a todas as pessoas que sofreram e ainda hoje sofrem violações de direitos humanos, no Brasil. Rezo para que os responsáveis entendam que os crimes que eles cometeram ficam na alma das vitimas para sempre. Porque hoje eu falo sobre o que aconteceu, não sou mais vítima.

 

Raio-X

Karen Leslie Raborg Sage Keilt, 65, é escritora. Nascida em São Paulo, saiu do Brasil após a Lei da Anistia, em 1979, e hoje vive nos EUA. É autora de “The Parrot’s Perch” (referência a pau de arara, método de tortura usado na ditadura) e prepara um livro de memórias

Genda Mezarobba é cientista política e autora de “Um Acerto de Contas com o Futuro: a Anistia e suas Consequências” (Humanitas/Fapesp). Na Comissão da Verdade, coordenou o grupo encarregado de ouvir os relatos sobre violência sexual e de gênero.

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