Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Em cerimônia inter-religiosa, atriz lê trechos de peças escritas por Otavio Frias Filho

Bete Coelho leu trechos das peças 'Tutankáton' (1991) e 'Rancor' (1993)

São Paulo

Na parte final da cerimônia inter-religiosa em homenagem ao jornalista Otavio Frias Filho, morto na última terça (21) aos 61 anos, a atriz Bete Coelho leu trechos das peças “Tutankáton” (1991) e “Rancor” (1993), escritas por Otavio. 

Como dramaturgo, Otavio teve peças encenadas em São Paulo, e uma versão de “O Terceiro Sinal”, texto em que narra sua experiência como ator, esteve em cartaz no Teatro Oficina até maio, com Bete Coelho.

O ato, com cerca de 500 pessoas na Matriz Paroquial Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no Sumaré, zona oeste de São Paulo, foi celebrado por dom Fernando Antônio Figueiredo, bispo emérito da diocese de Santo Amaro, Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelita Paulista, e Priscila Veltri, do centro budista Chagdud Gonpa Odsal Ling, em São Paulo.

Jornalista, dramaturgo e ensaísta, Otavio (1957-2018) foi vítima de um câncer. Durante 34 anos, ocupou o cargo de diretor de Redação da Folha, período em que o jornal se tornou o maior e mais influente do Brasil. Foi mentor do Projeto Folha, que modernizou o jornalismo brasileiro na década de 1980. Sob a gestão de Otavio, o veículo consolidou-se como uma referência no jornalismo apartidário, pluralista, crítico e independente.

A seguir, a íntegra da fala de Bete Coelho.

Cerimônia inter-religiosa em homenagem a Otavio Frias Filho, nesta segunda-feira (27), na Matriz Paroquial Nossa Senhora do Rosário de Fátima, em SP
Cerimônia inter-religiosa em homenagem a Otavio Frias Filho, nesta segunda-feira (27), na Matriz Paroquial Nossa Senhora do Rosário de Fátima, em SP - Danilo Verpa/Folhapress

 

"Rancor" (1993)

Leon - Agora que os pingos estão postos nos is. Agora que está tudo bem. Agora que desapareceram os ódios e as ilusões. Agora que vai dar tudo certo. Agora que as ideologias estão mortas. Agora que a civilização se tornou delicada. Agora que é pra sempre. Agora que ninguém tá mais aí, que ninguém quer saber e que… Agora que virou tudo uma festa, uma fornicação gigantesca que sempre se repete, agora que… Mas eu, eu que não fui feito para essas ocasiões esportivas, eu que carrego um peso tão escuro dentro de mim, que sofro vítima… vítima de uma lacuna, de uma falha, de uma falta, agora, então, já que tudo é legítimo, eu proclamo os meus direitos, eu não transijo nas minhas reivindicações: os meus desejos estão ardendo! Os meus sobressaltos à noite, os suores solitários que eu tenho, a minha ambição exaltada, ardendo! “Agora o inverno do meu descontentamento / Tornou-se glorioso verão pelo sol de York.” Porque agora é também a hora das oportunidades mais… mais espantosas, dos lances de divino atrevimento! No meio da pacificação geral, da aceitação de tudo por todos, enquanto todo mundo se distrai e se diverte, a coroa balança na cabeça dos velhinhos. Agora ninguém mais presta atenção, o mundo está quieto na sua pequena atividade inútil, mas isso agora, justo agora, só torna ainda mais turbulento e impaciente um coração como o meu.

"Tutankáton" (1991)

Tutankáton - Parece que vivi num sonho e que só agora, quando sinto o abraço gelado da morte, desperto e pela primeira vez contemplo a vida real que se esvai do meu corpo. Já não há espessuras turvas entre mim e as coisas que cintilam. O manto de palavras escorre como a água suja depois do banho. Apenas entramos e saímos de um mundo que já existia e continuará a existir depois. Vivemos na faixa estreita em que o fluido vivo frutifica, condenados a disputar a subsistência com a multidão de seres que se acotovelam em redor. Fora dessa faixa onde fervem criaturas, tudo é paz geométrica e mineral: ali vivem os deuses, mais próximos das algas marinhas do que dos animais selvagens, mais próximos destes do que do homem, o fantoche solitário da criação. Meu pensamento viaja por uma manhã de sol, há muitos anos, quando passeava de barco pelo rio. A brisa afasta o calor, e a luz tinge a água de um azul escuro e brilhante. Esse momento agora se expande e ocupa tudo o que fui, o que sou. Cada um tem a sua eternidade. Que importância tem tudo isso, afinal? Nascemos e morremos —o que ocorre no meio é um nada, como se o tempo não tivesse passado ou passasse depressa demais para nós. 

Vidente - Uma geração substitui a outra, o sol se levanta, o sol se põe mais uma vez. As narinas de todos respiram o ar da manhã, até que o homem vá para o seu lugar de repouso. Ninguém pode voltar, ninguém diz o que nos espera. Por isso festeja, mortal, nos teus dias de vida, até que chegue o dia de chorar. Eu ouvi falar do que aconteceu com os meus antepassados: seus caixões estão vazios como caixões de mendigos, abandonados por todos na terra. Suas casas não os reconhecem mais, é como se nunca tivessem existido. Por isso festeja, mortal, nos teus dias de vida! Cobre o teu corpo com óleo perfumado, faz grinaldas de flores para os seios da tua amada. Aproveita a música, a bebida e os sorrisos, esquece toda dor até o dia em que o teu barco venha aportar nas praias do silêncio.

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