1969 e 1973/74: Duas sucessões presidenciais da ditadura

Após ser escolhido em uma eleição indireta anárquica, Médici conduziu, de forma simples e silenciosa, Geisel ao Planalto

ELIO GASPARI

Este é o terceiro texto da série "Minha Eleição", que todo sábado trará relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

 

1969: Brasileiro não sabe votar. E quem sabe? 

Os números da votação para presidente em outubro ocuparão 4,4 terabites de memória. Os números do processo que em 1969 resultou na eleição do general Emílio Médici sobrevivem em 14 folhas de papel, manuscritas e indecifráveis.

A frase é velha: "Brasileiro não sabe votar". Na sucessão de 1969, ela foi posta à prova pela pergunta seguinte: se o povo não sabe votar, quem sabe?

O general Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil durante a ditadura militar - Folhapress - 25.jan.1970

Como os 85 milhões de brasileiros não sabiam votar, os 22 milhões de eleitores da época já tinham perdido o direito de escolher o presidente da República. O marechal Arthur da Costa e Silva havia sido eleito indiretamente pelo Congresso, estava no Planalto e teve uma isquemia cerebral. 

Progressivamente perdeu a fala e os movimentos do lado direito do corpo. Respeitada a Constituição, deveria assumir o vice-presidente, Pedro Aleixo, um civil. Nada feito. Seus telefones foram grampeados e a portaria do edifício onde vivia foi policiada, para que não tentasse sair do Rio.

Com o presidente entrevado, o vice deposto e restando 17 meses de mandato ficou a pergunta: quem deveria ser colocado na Presidência? Na emergência, concebeu-se uma junta militar, composta pelos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica. Se Costa e Silva estivesse incapacitado (coisa que até as pedras sabiam), deveria ser escolhido um sucessor. Como? 

Já que brasileiro não sabe votar e o Congresso estava fechado desde dezembro de 1968, seus 471 iluminados também deveriam ficar de fora, até por não merecerem confiança para decidir uma questão desse tamanho. O problema voltava ao ponto de partida: Quem? Como? A escolha deveria ser feita pelos militares. Todos? Só os oficiais? Só os generais?

O Exército, a Marinha e a Aeronáutica deveriam ter pesos iguais? Como o poder de fato estava com o Exército, formou-se uma espécie de Tribunal Superior Eleitoral, composto pelos nove generais de quatro estrelas que tinham assento no Alto Comando. 

Cabia-lhes decidir como seria feita a escolha. Para isso constituiu-se uma comissão, composta pelos generais Antônio Carlos Muricy (chefe do Estado-Maior), Emílio Garrastazu Médici (comandante das tropas do Sul) e Jurandyr Mamede (chefe do Departamento de Produção e Obras). Eram os "Três M". Eles deveriam definir critérios e colher os votos. Mais tarde, Muricy explicaria: "Foi uma auscultação".

Deve-se a Muricy a preservação de umas 15 folhas com as anotações numéricas desse processo, sempre com sua letra garranchuda. 

O general era um católico fervoroso, estourado, valente e sortudo. Anos depois, atracou-se com assaltantes e tomou um tiro no peito. A bala alojou-se numa área de seu coração que havia sido necrosada 30 anos antes por um enfarte. O general morreu em 2000, aos 94 anos, levando consigo a bala. 
Em 1969 a imprensa estava censurada. Assim, às 19h56 do dia 1º de setembro o Jornal Nacional estreou informando o que dizia o governo: o marechal "passou bem a noite e está em recuperação". Estava hemiplégico e mudo. Três dias depois um boletim informou que "a recuperação do presidente está ultrapassando as expectativas". Era tudo mentira.

O Sacro Colégio de generais reuniu-se quatro vezes ao longo de sete semanas. No conjunto da oficialidade o candidato mais forte parecia ser o general Affonso de Albuquerque Lima, ex-ministro do Interior de Costa e Silva. Como general-de-divisão faltavam-lhe uma estrela e a simpatia de muitos Grandes Eleitores. Pecado mortal: combatia a política econômica do ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto. 

Instalou-se o mais duradouro período de anarquia militar da história do Brasil, agravado pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick e da decisão desta Junta (o uso da palavra era proibido) de trocá-lo pela libertação de 15 presos políticos. 

Paraquedistas lançaram um manifesto, o comandante da guarnição do Rio brigou com o ministro do Exército, o chefe do Estado-Maior tentou enquadrar Albuquerque Lima (sem sucesso) e o almirante dos fuzileiros desafiou o chefe da Armada.

Como o brasileiro não sabia votar, talvez os 239 oficiais-generais do Exército, Marinha e Aeronáutica soubessem. Nada feito, por duas razões: porque Albuquerque Lima poderia prevalecer e porque não se podia dar um voto a um general com comando de tropa e outro ao colega que comandava uma mesa. 

Nesse caso alguém deveria explicar ao comandante da poderosa tropa do Rio que seu voto valia a mesma coisa que o do chefe do Departamento Geral do Pessoal e de sua mesa no quartel-general. Assim, um voto para cada quatro estrelas também não servia.

A "auscultação" feita pelos "Três M" baseou-se na divisão do Colégio Eleitoral em oito distritos. Os 16 generais das tropas do Rio, Minas Gerais e Espirito Santo formaram um distrito. Já os 14 generais das mesas do Estado Maior das Forças Armadas geraram dois. 

O Departamento de Provisão Geral, com 17 generais, teve mais peso que qualquer um dos quatro grandes comandos de tropa. Houve generais que votaram em três nomes, outros, num só. Em alguns comandos ouviram-se oficiais, em outros, não. Uma tabela parcial revela que o general Emílio Garrastazu Médici teve 77 votos e Albuquerque Lima, 38. Muricy reconheceria que nunca existiu tabulação final. 

Estava escolhido o terceiro presidente do regime. Como? Numa articulação que reuniu a facção de Costa e Silva, de quem Médici era amigo, com a do governo anterior, do marechal Castello Branco.

Em junho de 1969, dois meses antes da isquemia de Costa e Silva, circulou o primeiro número do semanário "O Pasquim". Nele havia uma entrevista com o jornalista Ibrahim Sued. Quando lhe perguntaram quem seria o próximo presidente, ele cravou: "general Emílio Garrastazu Médici".

Médici foi o único presidente da história republicana que não queria o lugar e chegou a ele sem mover um dedo. Pelo contrário, quando os colegas lhe disseram que não podia colocar o almirante Augusto Rademaker na Vice-Presidência, pegou o quepe, levantou-se e foi-se embora. Rademaker tornou-se o seu vice.

Esse gesto ilustra a firmeza de Médici, mas revela também que aquele general inexpressivo não era bobo. Anos depois ele contaria: "Se eu não fizesse aquilo, não nomearia nem o meu ajudante de ordens".

1973/4 A eleição de um voto só

A eleição presidencial de 1969 foi certamente a mais anárquica da história republicana. Houve dias em que o chefe da segurança do Palácio Laranjeiras distribuiu submetralhadoras aos oficiais. Quatro anos depois, o presidente Emílio Medici, que vivera aquela bagunça, conduziu a sua sucessão, a mais simples e silenciosa de todas. Quem escolheu o general Ernesto Geisel para a Presidência? Médici, e só Médici. 

Em 1973, quando aquele general taciturno anunciou o nome de seu sucessor, dos 100 milhões de brasileiros, talvez não chegassem a 100 mil aqueles que sabiam dessa possibilidade, e talvez fossem 5.000 os capazes de encher uma página dizendo quem era aquele general Geisel. Seriam apenas 500 os cidadãos que acompanharam a escolha, de longe. Quantas pessoas mencionaram o assunto na presença do escolhido? Menos de 20. 

De setembro de 1969 a março de 1974, Emílio Médici governou o país eliminando os vestígios da anarquia militar que começara em 1964. 

Teve a ajuda decisiva do general Orlando Geisel, a quem entregou o Ministério do Exército e, de certa forma, a supervisão das demais Forças.

Orlando havia sido seu chefe, tratavam-se por você e tinham em comum uma confiança absoluta no uso da força.

Uma confissão de Médici explicaria sua noção de poder: "Eu tenho o AI-5 nas mãos e, com ele, posso tudo". 

De fato, podia manter a imprensa sob censura, fechar o Congresso, cassar mandatos, fazer o que bem entendesse. Esse general não haveria de deixar que sua própria sucessão escapasse ao seu controle.
Médici explicitou sua preferência pelo general Ernesto Geisel já em janeiro de 1971. Era o irmão mais moço do ministro do Exército, e o presidente colocara-o na presidência da Petrobras. 

Mesmo tendo revelado a preferência numa conversa com colaboradores, nunca tratou do assunto com ele.

A escolha foi protegida pelas práticas do regime. Primeiro foi mandado para a reserva o general Albuquerque Lima, o azarão de 1969. Em seguida, entrou o ferrolho da censura. 

A primeira ordem para não se falar no assunto veio em junho de 1972. Em agosto a proibição foi clara: 
"De ordem do ministro da Justiça, está terminantemente proibida a publicação em qualquer jornal ou revista de comentários, críticas, sugestões ou análises a respeito da sucessão presidencial".

Ela seria reiterada em pelo menos oito ocasiões. 

O general Orlando Geisel tratou do assunto com o irmão. 

"Por que não vai ser você?", perguntou Ernesto.

"Porque minha saúde não permite". 

Um único movimento capaz de alterar a situação veio à tona em 1972, quando um deputado propôs a reeleição de Médici "para dar continuidade a esse extraordinário processo de desenvolvimento econômico e social que tem causado admiração ao mundo inteiro". 

Emílio Garrastazu Médici transmite faixa presidencial a Ernesto Geisel
O ex-presidente Emílio Garrastazu Médici transmite faixa presidencial a Ernesto Geisel, eleito indiretamente pela ditadura militar - Reprodução

O presidente poderia vir a ser candidato até mesmo numa eleição direta. A manobra prosperou por muitos meses e encantou os poderosos ministros da Fazenda, Antonio Delfim Netto, dos Transportes, Mário Andreazza, e do Gabinete Civil, João Leitão de Abreu. 

Deu em nada, por dois motivos. O primeiro, essencial, foi a recusa de Médici. O mesmo general que chegou ao Planalto sem mover um só dedo recusou-se a continuar nele. 

O segundo, que viria a blindar Geisel, foi o fato de que ele e seu entorno abraçaram a ideia: "Ninguém conte comigo contra o Médici", dizia. Se o presidente quisesse continuar, ótimo. Contudo, se alguém quisesse se candidatar, não estaria se opondo a Geisel, mas ao presidente. Fecharam a porta. 

O próprio Geisel era um crítico da posição em que estava: "Só num país como o Brasil na situação atual eu poderia chegar à Presidência da República. Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado. Isso é jeito?".

Pelo voto de Médici, a ele chegou-se. Geisel deveria ir ao Palácio Laranjeiras na tarde de 13 de junho de 1973 para receber a notícia. 

Surpreendentemente, foi avisado de que o presidente decidiu antecipar o encontro para o dia 12. Por quê? Porque não queria perder a transmissão do jogo Brasil x Austria. (Deu empate, 1 x 1)

Dias depois o Brasil soube da novidade. Geisel foi eleito em janeiro de 1974 e tomou posse em março.
Médici nada recomendou, nada sugeriu e poucas vezes se reencontraram.

Para quem acredita na eficácia desse tipo de escolhas, Roberto Médici revelou que ouviu o seguinte do pai, quando já estava afastado da vida pública: 

"Se arrependimento matasse, eu já estaria morto".

Elio Gaspari é jornalista, autor de 5 volumes sobre o regime militar, entre eles 'A Ditadura Encurralada'


Candidatos a presidente
1969 Emílio Garrastazu Médici (Arena) 293 votos (eleição indireta)

1974 Ernesto Geisel (Arena) 400 votos
Ulysses Guimarães (MDB) 76 votos
(eleição indireta)

Candidatos a vice
1969 Augusto Rademaker (Arena)

1974 Adalberto Pereira dos Santos (Arena)
Alexandre Barbosa Lima Sobrinho (MDB)

Slogan do Governo
1969 Brasil: Ame-o ou Deixe-o" 
1974 Continuidade sem imobilidade"

Música-tema
Médici "Noventa milhões
Em ação
Pra frente Brasil
No meu coração

Geisel "Este ano
Quero paz no meu coração
Quem quiser ter um amigo
Que me dê a mão
O tempo passa e com ele caminhamos todos juntos
Sem parar

População à época
1960 70 milhões
1970 94 milhões

PIB
1969 alta de 9,5%
1974 alta de 8,2%

Inflação
1969 19,3%
1974 34,5%

Urbanização
Anos 1960 45%
Anos 1970 56%

Expectativa de vida
Anos 1960 52,5 anos
Anos 1970 57,6 anos

Músicas
1969 
"Cantiga por Luciana", Evinha
1974 "Charlie Brown", Benito di Paula

Escola vencedora do Carnaval do Rio
1969
Salgueiro 
Tema: Bahia de Todos os Deuses

1974 Salgueiro 
Tema: O Rei de França na Ilha da Assombração

Fontes: IBGE,  Acervo Folha e FGV

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