Descrição de chapéu Eleições 2018

'Quem chega a presidente tem de baixar a crista antidemocrática', diz Ayres Britto

Sondado para o Ministério da Justiça, ex-ministro do STF prega que poderes do estado devem sair em defesa da liberdade de imprensa

Gustavo Uribe
Brasília

O ex-presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto avalia que a atual situação do país é "sombria", mas diz acreditar que a democracia se blindará de qualquer eventual tentativa de “liquidá-la”.

Em entrevista à Folha, o magistrado aposentado, que diz ter sido sondado para o Ministério da Justiça de um eventual governo de Jair Bolsonaro (PSL), considera que o cenário de radicalização se deve ao fato das duas candidaturas presidenciais (Bolsonaro e Fernando Haddad, do PT) se verem como projetos de poder, não de governo.

Para ele, a ideia de convocar agora uma Assembleia Constituinte é “flertar com o abismo” e os poderes do estado devem sair em defesa da liberdade de imprensa se ela estiver em risco.

Segundo Britto, as fake news "são o lado gângster e canalha da comunicação online".

 O ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto durante entrevista à Folha em sua casa
O ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto durante entrevista à Folha em sua casa - Pedro Ladeira - 24.out.2018/Folhapress

A democracia sai enfraquecida do processo eleitoral deste ano?
É preciso ver o lado factual e o lado jurídico. Factualmente, a situação é preocupante. Não chegaria a dizer trevosa, mas é sombria. A gente tem a clara impressão de que cada corrente majoritária vê a outra como signo não de um projeto de governo, mas de poder. Projeto de poder é de conteúdo secreto. Não diz para o grande público o que quer fazer quando chegar ao poder e quer chegar ao poder para ficar nele por muito mais do que quatro anos. Agora, juridicamente, o quadro é mais alentador. A Constituição dispõe de antídotos contra projetos de poder. A democracia se blinda eficazmente de qualquer tentativa de desnaturá-la e, mais ainda, de liquidá-la.

A radicalização da disputa política ameaça a legitimidade do futuro governo?
Em rigor, não. A menos que se apure a utilização de métodos desequilibradores do que se chama de correlação de forças.

O PT e o PDT entraram com ações contra Bolsonaro por suspeita de irregularidade no processo eleitoral. Essas ações devem prosseguir após o resultado da eleição?
Tudo o que signifique uso ilícito de meios competitivos tem de ser processualmente apurado, instruído e julgado. Se os parâmetros constitucionais a serem aferidos pela Justiça Eleitoral forem conspurcados, o que deve sobrevir é a abertura de um processo até o fim do julgamento.

O STF sofreu ataques nos últimos dias, inclusive com uma ameaça de fechamento (por um filho de Bolsonaro). A instituição está em risco?
Não, porque a sociedade brasileira já evoluiu para entender que a separação dos poderes é signo de civilização avançada. O Supremo tem o nome de Supremo porque é o guardião mais alto da lei suprema. E ele é quem dá a última palavra nas controvérsias sobre casos e teses. Daí se diz, civilizadamente, que não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas e o Judiciário de falar por último. Se o candidato pode defender posturas inconstitucionais e exagerar na retórica, outra coisa é no exercício do poder. Se no cargo a autoridade se revelar incompatível com a Constituição, a sociedade fica em um dilema jurídico: ou a Constituição ou o presidente. E a resposta só pode ser que a Constituição fica e o presidente sai, o que se chama de impeachment. Quem chega para exercer o cargo de presidente tem de baixar a crista antidemocrática se ele, eventualmente, tiver uma natureza antidemocrática.

As duas candidaturas a presidente defenderam a formulação de uma nova Constituição, mas depois recuaram. Há necessidade de um texto?
Quando se convoca uma Assembleia Constituinte? Quando a Constituição em vigor já deu o que tinha de dar e está com o pé na cova. [Quando] As instituições nascidas à luz dessa Constituição entraram em colapso cardíaco e padecem de falência jurídica múltipla. É esse o pressuposto psicossocial e político da convocação de uma Assembleia Constituinte. Agora, isso não existe, a atual Constituição fez 30 anos agora, é muito nova e está na plenitude de seu vigor. Flertar com o abismo da Assembleia Constituinte chega a ser uma insanidade.

Há um cenário de disputa entre poderes? Como Executivo e Forças Armadas?
Não, não se pode confundir Força com Poder. Na Constituição, a separação dos poderes faz do Judiciário ponto de afunilamento da manifestação da vontade jurídica do Estado. Por isso, que se diz que ordem judicial não se discute, se cumpre. O substantivo supremo tem dois conteúdos. É supremo por ser o mais alto e por ser o extremo. O que dá a última palavra. E isso é cláusula pétrea. As Forças Armadas não são um Poder da República. O Poder é civil e ele é tríplice: Legislativo, Executivo e Judiciário. As Forças Armadas se constituem sob a autoridade do presidente da República, chefe de um dos poderes. E elas têm tido um comportamento exemplar, a serviço do estado democrático de direito, rigorosamente nos marcos da Constituição.

O senhor é favorável à ampliação de 11 para 21 ministros na Suprema Corte (como propõe Bolsonaro)?
Primeiro, é preciso saber juridicamente se pode haver, mesmo por emenda, modificação da composição numérica do Supremo sem ser uma iniciativa do próprio Supremo. E, segundo, convenhamos que a resposta seja positiva, seria feita no curso da legislatura que fez a modificação ou na subsequente? Temos um desafio conceitual pela frente. Na minha opinião, o número de onze ministros é suficiente. São onze pares de olhos, vocações jurídicas e reputações ilibadas. Eu me dou por satisfeito pela regra atual.

Qual deve ser o papel do Poder Judiciário diante dos ataques recorrentes a veículos de imprensa, com, inclusive, perseguição de jornalistas?
A liberdade de imprensa é assegurada pela Constituição em letras de forma. Não há democracia sem liberdade de imprensa. São irmãs siamesas, uma puxa a outra. Então, se a liberdade de imprensa está em perigo, os órgãos estatais e os poderes do estados devem com absoluta prioridade sair em defesa dessa liberdade e preservá-la, porque ela é elemento conceitual da própria democracia. Não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso.

E diante de eventuais retrocessos em políticas de direitos humanos?
Os direitos humanos clássicos —liberdade de expressão, trabalho, locomoção e reunião— são garantias individuais. E a Constituição as categoriza como cláusula pétrea. Cláusula pétrea é garantia do avanço e, por consequência, proibição do retrocesso. Não pode haver retrocesso. Quando o Estado paga uma dívida civilizatória, não pode estornar esse pagamento e voltar a ser devedor. É papel do Judiciário dizer: “Aqui, não”.

A Justiça Eleitoral perdeu o controle sobre a dispersão de fake news?
A Justiça Eleitoral lida a cada eleição com problemas novos. É uma Justiça efetiva, dinâmica e que dá respostas rápidas. As urnas eletrônicas são seguríssimas. Esse é um problema novo, fruto da internetização da vida. A comunicação tem se autonomizado dos fatos. As fake news são o lado gângster e canalha da comunicação online, é um vírus que precisa ser combatido. E a Justiça, tomando ciência das coisas, tem de sair em combate a essa gravíssima ilicitude.

A presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Rosa Weber, já admitiu que ainda não encontrou uma solução.                                                                                                                                                                                 Ela está procurando a saída.

Como evitar que as fake news influenciem no processo eleitoral?
Elas não devem interferir no processo eleitoral. Como concretamente identificar as fontes? Aí temos de trabalhar junto aos provedores de internet. E eles, certamente, irão colaborar.

O senhor chegou a ser sondado para o Ministério da Justiça de um eventual governo de Jair Bolsonaro?
Sim, mas não pelo candidato. Eu recebi há dias um telefonema de um amigo que me disse ser muito próximo do general Hamilton Mourão e que os dois, conversando, ventilaram meu nome como algo desejável. E eu dei a mesma resposta que dei ao presidente Michel Temer, um amigo meu de tantos anos. Quando o presidente me convidou para o cargo, eu agradeci, mas disse a ele que infelizmente não aceitaria. Eu saí do Supremo com a cabeça de juiz e só sei ver as coisas por um prisma suprapartidário. Então, não tenho mais condições psicológicas para voltar a ocupar um cargo público ortodoxo. Prefiro continuar em um nível de pensador.

 
 

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