Livros didáticos divergem sobre caráter civil do golpe de 1964

Obras de história do ensino médio refletem discussão historiográfica sobre participação dos não militares

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São Paulo

Se no campo político recrudesceu a batalha ideológica em torno da classificação do golpe de 1964 como tal, para a historiografia contemporânea essa questão parece superada.

É possível observar isso, por exemplo, nos livros didáticos de história usados no ensino médio, tanto na rede pública como na privada.

De uma leitura comparada de seis títulos, publicados por três grandes editoras do setor —Saraiva, Moderna e Scipione—, depreende-se que não há dúvidas quanto ao caráter golpista da deposição do presidente João Goulart e sobre a interrupção da democracia nos 21 anos que vão até 1985.

Estudantes do Mackenzie saem às ruas do centro de São Paulo para comemorar o golpe
Estudantes do Mackenzie saem às ruas do centro de São Paulo para comemorar o golpe - 1º.abr.64 - Acervo UH/Folhapress

Pode-se ler as obras, homogêneas, com um bingo para marcar a sequência de eventos: renúncia de Jânio Quadros, tentativa parlamentarista para limitar o poder de Jango, plebiscito do presidencialismo, reformas de base, comício da Central do Brasil, Marcha da Família, general Olympio Mourão Filho desloca tropas de Minas para o Rio, Jango deixa Brasília, presidente da Câmara declara vaga a Presidência da República, Ato Institucional nº 1, Castello Branco eleito pelo Congresso.

Uma divergência, porém, se impõe: a dimensão da participação civil em 1964, com o uso —ou não— da expressão golpe civil-militar.

Das 6 obras analisadas, 4 utilizam essa expressão, que ganhou força entre historiadores a partir da década de 1990.

“O golpe não contou apenas com a iniciativa militar. Partes importantes do empresariado brasileiro, pessoas ligadas à imprensa e políticos temiam uma guinada à esquerda de Jango e rejeitavam as reformas nacionalistas e estatizantes que o presidente defendia”, afirma um desses livros.

Segundo outro deles, que prefere a expressão golpe militar, “em 31 de março de 1964, explodiu a rebelião das Forças Armadas contra o governo João Goulart. O movimento militar teve início em Minas Gerais, apoiado pelo governador mineiro Magalhães Pinto”.

Não é citado, nem aqui nem depois, o papel decisivo, por exemplo, do governador da Guanabara Carlos Lacerda, talvez o principal líder civil pró-golpe, que meses antes chegou a pedir uma intervenção dos EUA. A adesão de empresários, da classe média, imprensa e igreja passa batido.

“Quando você fala de golpe militar, é como se você estivesse mais ou menos limpando a barra dos civis e aí fica um peso maior nas costas dos militares”, afirma Luiz Antonio Dias, professor da PUC-SP.

Segundo o historiador, a discussão acadêmica atualmente vai um passo além e analisa se civil-militar é preciso o suficiente para descrever o golpe.

“Alguns historiadores acham que civil é muito amplo, e daria a ideia de apoio da população. Eles acabam utilizando ‘golpe empresário-midiático-militar’”, afirma Dias.

“Isso provavelmente vai demorar a chegar nos livros didáticos e não é um consenso. Eu particularmente prefiro o termo ‘civil’ porque há outras entidades. A igreja, por exemplo, apoiou o golpe. É melhor pensar em golpe civil, sempre com a ressalva de que uma parte considerável da população apoiava o governo Goulart.”

A historiadora Miriam Hermeto, professora da UFMG especialista na análise de materiais didáticos, lembra que há outros fatores em jogo.

“O saber do livro didático não é uma transposição do que é o saber da historiografia”, diz ela. “Quando se trabalha uma tema de história contemporânea na escola, muitas vezes as pressões da memória social das famílias são muito fortes, as pressões dos próprios autores dos livros, da memória deles.”

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