Com instituto, família planeja 'escola de Marielles' e diálogo com centro e direita

'Não é sobre ideologia partidária, é sobre valor humano', afirma irmã de vereadora do PSOL morta há dois anos

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Rio de Janeiro

"Tomara que você tente fazer de sua vida a partir de hoje uma vida de luta para vencer as guerras e força para combater os inimigos, pois é assim que você viverá agora”, escreveu uma amiga no aniversário de 15 anos de Marielle, em 1994.

O caderno que traz essa mensagem é uma das peças expostas no Instituto Marielle Franco, criado em fevereiro pela família da vereadora do PSOL, cujo assassinato completa dois anos neste sábado (14). O crime, que também vitimou o motorista Anderson Gomes, ainda não foi solucionado pelas autoridades fluminenses.

No mês que marca as mortes, os pais, a irmã e a filha da vereadora alugaram uma casa temporária para dar o pontapé inicial no instituto, que tem promovido cineclubes, rodas de conversa, oficinas com contação de histórias para crianças e lançamentos de livros.

Entre os objetivos estão também inaugurar uma sede no Complexo da Maré, onde a vereadora cresceu, lançar o projeto nacionalmente e promover o diálogo com o centro e a direita.

"As pessoas ainda hoje nos atacam enquanto familiares da Marielle por ela ser de esquerda", diz Anielle Franco, 35, diretora do instituto que leva o nome da irmã, morta aos 38 anos.

“Queria em algum momento conseguir dialogar com centro e direita sobre a importância de ter um trabalho social com o nome da Marielle. Não é sobre ideologia partidária, é sobre valor humano. Acho que o instituto poderia ser esse lugar.”

Anielle também planeja uma “escola de Marielles” para inspirar novas gerações, promovendo o diálogo com mulheres reconhecidas por sua atuação profissional, social e/ou política.

“Enquanto professora, eu queria poder levar pessoas de referência para inspirar aquelas jovens. Que elas olhassem e falassem: foi possível para elas, talvez seja possível para mim também. Vivemos um momento de muito ódio, desespero, de acharem que não tem mais jeito”, diz.

Um dos sonhos de Anielle foi literal. Em maio de 2018, ela sonhou pela primeira vez com a irmã depois do assassinato. “Ela dizia: ‘meu aniversário tá chegando e você não vai fazer nada para mim? E o Papo Franco, faz um Papo Franco’. E eu juro por Deus que não sabia o que era”, conta.

O Papo Franco era um projeto do mandato de Marielle na Câmara Municipal do Rio, no qual conversaria semanalmente com jovens sobre temas como maioridade penal e legalização do aborto. A vereadora foi morta uma semana depois de gravar o primeiro episódio.

Um “centro de memória e ancestralidade” também faz parte dos planos da família para colocar em prática os quatro pilares do novo instituto: lutar por justiça, defender a memória, multiplicar o legado e regar as sementes.

O espaço seria uma forma de preservar e expor itens pessoais, fotos e outros objetos que fizeram parte da vida da vereadora, assim como histórias de mulheres que vieram antes dela para “fortalecer as raízes”.

Uma parte desse acervo já está na casa que hoje abriga o instituto, localizada na Pedra do Sal, no centro do Rio de Janeiro. A região é referência para a cultura e resistência negra na cidade e foi onde Marielle comemorou seu último aniversário.

As paredes de tijolos carregam fotografias de sua infância, quadros e bandeiras estampando seu rosto e a conhecida placa de rua com seu nome.

Para sustentar o espaço e financiar todos esses projetos, o instituto abriu uma vaquinha online. O objetivo é arrecadar R$ 450 mil até o final do ano, sendo que até esta sexta (13) foram doados quase R$ 100 mil. Instituições filantrópicas também ajudaram.

A equipe decidiu que, ao menos no início, não buscaria financiamento público. Primeiro, por avaliar que muitas pessoas desejam contribuir espontaneamente com a causa. Segundo, para evitar reações negativas e disseminação de mentiras sobre o uso do dinheiro.

Não é raro que a família seja alvo de críticas e discursos de ódio, tanto na internet quanto nas ruas. "Já fui cuspida na cara com minha filha no colo, xingada na rua. Tem muito carinho, mas muita coisa ruim”, afirma Anielle.

A irmã da vereadora, que é professora de inglês, chegou a ser demitida da escola onde trabalhava porque não queriam se associar à sua imagem. “A diretora falou: ‘olha, não tem mais como, porque sua imagem agora está muito forte'”, conta.

Outra dificuldade foi encontrar uma casa para abrigar o instituto. Alguns dos proprietários procurados não quiseram alugar seus imóveis quando foram informados sobre o que seria feito com o espaço.

Mesmo o aparente apoio à causa muitas vezes não se reverte em ajuda concreta. Certa vez, andando pelo Leblon (bairro da zona sul carioca), Anielle viu uma boneca de pano de Marielle sendo vendida por R$ 200.

“Perguntei para a dona com que direito ela estava vendendo a boneca. Ela disse: ‘uma amiga minha faz e divido com ela’. Aí eu falei: ‘tá, então esse dinheiro não vai para lugar nenhum?’ Eu não queria para mim, ela poderia mandar para uma ONG de mulher negra, qualquer lugar.”

Ainda que a família ache impossível controlar o uso da imagem de Marielle, o instituto foi uma forma que encontraram para evitar que sua memória seja desrespeitada, oferecendo suporte e sendo referência para aqueles que querem homenageá-la.

Neste sábado, a equipe havia organizado uma série de atividades para lembrar a vereadora, que precisaram ser canceladas por causa do avanço do coronavírus. No lugar do ato, o instituto convocou os apoiadores a estender lenços amarelos nas janelas e compartilhar a #JustiçaPorMarielleEAnderson nas redes sociais.

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