Ex-PM herói de Bolsonaro tinha contas pagas por milícia, revelam documentos

Material foi apreendido no escritório de um dos responsáveis pelas finanças de grupo criminoso

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Rio de Janeiro

O ex-policial militar Adriano da Nóbrega, chamado de herói pelo presidente Jair Bolsonaro e ligado ao gabinete de seu filho Flávio, tinha suas contas pessoais e de familiares pagas por membros de uma milícia, apontam documentos apreendidos pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

O material usado como prova pela Promotoria foi recolhido em janeiro de 2019, quando foi deflagrada a Operação Os Intocáveis. Os documentos foram encontrados no escritório do homem apontado como responsável pelas finanças da quadrilha de Rio das Pedras, na zona oeste do Rio.

São faturas de cartão de crédito, boletos de contas de energia e recibos em nome de Adriano —também identificado como “Gordinho” nos documentos— e com referências à mulher do ex-PM, Julia Lotuffo.

Adriano esteve foragido por mais de um ano até o mês passado, quando foi morto durante uma operação policial na Bahia. A família do ex-PM diz que ele foi vítima de uma "queima de arquivo", e os resultados de uma segunda perícia no corpo do miliciano ainda não foram divulgados.

O ex-capitão foi homenageado por Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e também defendido pelo presidente Jair Bolsonaro em 2005, quando ele ainda era deputado federal.

Adriano tinha até 2018 duas parentes no quadro de funcionários do antigo gabinete de Flávio na Assembleia do Rio. Ele controlava contas usadas para abastecer Fabrício Queiroz, amigo do presidente Bolsonaro e ex-assessor de Flávio suspeito de ser o operador da “rachadinha” investigada pelo Ministério Público do Rio. Nesse tipo de esquema, funcionários são coagidos a devolver parte de seus salários aos deputados.

As defesas de Adriano e de Flávio afirmam não haver provas de que o ex-PM integrava a milícia de Rio das Pedras, motivo pelo qual era procurado havia mais de um ano. Os autos da ação penal a que respondia, porém, mostram algumas das evidências recolhidas pelos investigadores.

As principais foram encontradas no escritório de Manoel de Brito Batista, o Cabelo, apontado como o administrador da milícia. Era ele quem controlava pagamentos e cuidava do dia a dia dos negócios explorados pela quadrilha.

No local, policiais encontraram uma conta de luz referente a um imóvel que Adriano declarou ser sua residência ao depor como testemunha, em 2018, no inquérito sobre a morte de Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes —não há nenhuma evidência sobre a atuação de Adriano na morte da vereadora.

A conta de luz estava em nome de outra pessoa, mas tinha a inscrição feita à mão indicando "Gordinho", apelido que o Ministério Público afirma ser usado pelos membros da milícia para se referir a Adriano.

O apelido também aparece escrito à mão em boletos de cartão de crédito em nome de outras pessoas encontrados no escritório de Manoel. Ele aparece ao lado da inscrição "Julia". Investigadores afirmam se tratar de Julia Lotuffo, mulher do ex-PM há cinco anos.

A Folha apurou que algumas empresas que aparecem na fatura do cartão de crédito foram notificadas para esclarecer quem foi o real cliente do serviço. As respostas indicam o próprio Adriano, Julia e a mãe do ex-PM, Raimunda Veras Magalhães, ex-assessora de Flávio Bolsonaro, reforçando serem contas pessoais do ex-capitão em nome de laranjas.

O nome “Gordinho” também aparece num vasto registro de contabilidade apontando rendimento com o aluguel de imóveis em favelas dominadas pela milícia.

Um outro documento encontrado no escritório de Cabelo é ainda mais explícito ao apontar o vínculo entre o ex-capitão e a milícia. Trata-se de um recibo feito à mão por um vendedor de um terreno em Santa Cruz, outro bairro da zona oeste. Neste papel, datado de 2012, o nome do comprador aparece completo: “Adriano Magalhães da Nóbrega”.

Este recibo, para os responsáveis pela investigação, indica que o administrador da milícia cuidava de outros negócios de Adriano, e não apenas os relacionados com Rio das Pedras. Há ainda a suspeita de que o ex-capitão tivesse também se associado à milícia de Santa Cruz, que tem outros integrantes.

Essas são as primeiras evidências documentais contra Adriano já obtidas pela polícia.

Quando a acusação foi apresentada ao juiz Guilherme Kalil, da 4ª Vara Criminal, as provas contra Adriano se resumiam a três citações a seu primeiro nome em conversas interceptadas com autorização judicial e três denúncias anônimas apresentadas ao Disque-Denúncia.

O MP-RJ na ocasião já atribuía o apelido “Gordinho” a Adriano. E usava duas interceptações em que Cabelo se referia ao apelido para reforçar o envolvimento do ex-PM.

A denúncia e seus anexos, contudo, não apontavam como os promotores concluíram que era essa a forma usada para se referir ao ex-capitão. Além disso, a própria Promotoria afirmava existir um outro “Gordinho”, que atuava como corretor de imóveis.

Com essas provas iniciais, o juiz Kalil deferiu a abertura de ação penal contra Adriano e expediu mandado de prisão contra ele. Durante as buscas e apreensões, foram encontrados os documentos que reforçaram as informações da Promotoria.

Para investigadores, as provas recolhidas mostram o ex-PM como um dos chefes da milícia e demonstram a existência de dois “Gordinhos” em Rio das Pedras: o corretor que comercializa os imóveis irregulares e Adriano, que lucra com o negócio ilegal.

Obter provas contra o ex-PM ligado à família Bolsonaro foi um desafio de investigadores por mais de uma década.

A investigação sobre a milícia de Rio das Pedras foi aberta em 2018 como um braço da apuração sobre um grupo de assassinos de aluguel, chamado pelo MP-RJ de “Escritório do Crime”. Nessa apuração, a polícia chegou a quebrar o sigilo telefônico de oito celulares e dois telefones fixos atribuídos a Adriano. Nenhum deles registrou conversas.

“O fato de o denunciado Adriano não falar ao telefone, bem como delegar aos seus asseclas o gerenciamento dos negócios ilícitos provenientes das atividades criminosas desempenhadas pela organização criminosa, evitando qualquer tipo de exposição, reforça, ainda mais, a sua hierarquia sobre os demais integrantes da malta”, escreveu a Promotoria na denúncia contra o ex-PM.

Investigadores afirmam que o ex-capitão trocava de telefone constantemente para evitar ser grampeado. Na operação em que foi morto, ele tinha em sua posse 11 celulares, que estão sendo analisados pelo MP-RJ.

O ex-capitão também já havia respondido a uma ação penal por tentativa de homicídio contra o pecuarista Rogério Mesquita em meio a uma disputa entre bicheiros da capital. Embora preso duas vezes pelo crime, com base em diversos depoimentos que apontavam seu envolvimento, foi absolvido na Justiça porque as testemunhas não confirmaram à Justiça as versões que deram à polícia.

“As razões pelas quais a instrução se deu de forma tão acidentada podem ser especuladas, mas até o momento, não puderam ser provadas”, escreveu o juiz Márcio Gava em sua sentença que livrou Adriano e outros cinco réus.

Documentos não provam pagamentos, diz defesa

O advogado Paulo Emílio Catta Preta, que defende a família de Adriano, afirmou que os documentos apreendidos não comprovam a atuação do ex-PM junto à milícia de Rio das Pedras.

“No máximo provam que ele conhecia aquelas pessoas. Ele podia conhecer essas pessoas, isso não quer dizer que tinha uma participação na suposta organização criminosa”, disse Catta Preta.

Ele também negou que o ex-PM e sua mulher tivessem contas pessoais pagas em cartões de outras pessoas, como indicam os documentos.

“Em momento algum eles tiveram contas pagas por terceiros. Os elementos são muito frágeis. Ela [Júlio Lotuffo] não reconhece que esses cartões em nome de terceiros a beneficiaram. Ela diz também que o Adriano não usava cartões de outros”, declarou o advogado.

Catta Preta disse também que o Ministério Público não consegue diferenciar de forma clara quando o apelido “Gordinho” se refere a Adriano e quando se refere ao corretor de imóveis da região.

As ligações de Adriano com os Bolsonaro

1 - Em junho de 2005, Flávio Bolsonaro, então deputado estadual do Rio de Janeiro, concedeu a medalha Tiradentes, mais alta honraria da Assembleia, ao então PM Adriano da Nóbrega. Ele estava preso sob acusação de homicídio. O presidente Jair Bolsonaro disse que determinou ao filho que homenageasse o policial

2 - Em outubro de 2005, Jair Bolsonaro criticou em discurso na Câmara dos Deputados a condenação de Adriano pelo Tribunal do Júri por homicídio. Afirmou que ele era um "brilhante oficial". Dois anos depois, Adriano foi absolvido pelo crime em novo julgamento

3 - Desde 2007 Adriano teve parentes nomeados no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa. Primeiro foi a então mulher e, em 2016, a mãe. Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, disse ser o responsável pela indicação das duas

Suspeitas contra Adriano

Homicídio
Adriano foi preso com outros policiais sob acusação de matar um guardador de carros em novembro de 2003, após a vítima denunciar extorsão de policiais. Ficou preso de janeiro de 2004 a novembro de 2006. Foi condenado em outubro de 2005, mas absolvido depois em novo julgamento, em janeiro de 2007.

Jogo do bicho
Adriano foi preso em setembro de 2008 sob suspeita de tentar matar o pecuarista Rogério Mesquita como parte da guerra pelo espólio de um bicheiro da capital. Foi solto um mês depois e, em dezembro de 2011, preso pelo mesmo episódio. Acabou solto em agosto de 2012 e absolvido do crime. Em janeiro de 2014, contudo, foi expulso da PM por relação com a contravenção.

Milícia
Adriano era acusado de ser o chefe da milícia de Rio das Pedras, a mais antiga do Rio de Janeiro. Investigadores apontam que ele era uma espécie de grande investidor nos negócios ilícitos, sem atuar no dia a dia da quadrilha.

’Rachadinha’
Contas que eram controladas por Adriano foram usadas para abastecer Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio na Assembleia do Rio e apontado como o operador da “rachadinha” (esquema em que funcionários são coagidos a devolver parte do salário aos deputados). Ele tinha duas parentes nomeadas no gabinete do então deputado e mensagens sugerem que o ex-capitão recebia parte dos salários da ex-mulher, Danielle.
 

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