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Fricção entre Bolsonaro e governadores expõe paradoxo de gestão da crise do coronavírus

Presidente não está disposto a arcar com custos políticos das medidas drásticas com economia ruim e Executivo frágil

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Fernanda Cimini Manoel Gehrke

O ritmo do contágio pela Covid-19 impõe a governantes decisões difíceis e rápidas, com impactos sociais e econômicos imprevisíveis. A epidemia envolve questões técnicas complexas e o seu combate um grau excepcional de organização e de mobilização das forças do Estado.

Diante de um cenário completamente novo e permeado por incertezas, as decisões políticas e as estratégias de comunicação adotadas pelas autoridades públicas adquirem um papel central na estratégia de contenção. Nas últimas semanas, governos ao redor do mundo tiveram que adotar medidas extremas com poucos precedentes na história recente.

A Itália, ao vivenciar a escalada do contágio, tornou-se laboratório para as demais democracias, influenciando os rumos da gestão política da epidemia. Determinações mais rígidas se tornavam necessárias à medida que o registro de contágios aumentava e o número de pacientes graves pressionava os sistemas de saúde das regiões mais atingidas.

Antes mesmo do aumento dos casos na Itália, o opositor Matteo Salvini, líder da Liga, partido de extrema-direita, defendeu prontamente o fechamento das fronteiras italianas, relacionando a transmissão do vírus à sua bandeira favorita, contrária aos refugiados e imigrantes. Não foi sem polêmicas que as medidas de contenção foram instaladas.

Na primeira semana após a introdução de controles, os presidentes das regiões inicialmente mais afetadas, Lombardia e Vêneto, ambos do partido de Salvini, tentaram se diferenciar da postura adotada pelo governo italiano e, assim, capitalizar politicamente.

Inicialmente o presidente da Lombardia criticou a adoção de medidas severas na sua região. Após as medidas serem estendidas a toda a Itália, os presidentes dessas regiões mudaram de posição, passando a afirmar que providências mais drásticas ainda seriam necessárias.

À medida que ficou clara a gravidade da situação, as decisões do primeiro ministro Giuseppe Conte consolidaram a coordenação entre os diferentes níveis de governo e a aceitação das medidas por grande parte da população. Passou a se debater na Itália a falta de resolução por parte dos outros países europeus a adotar medidas semelhantes.

As medidas iniciais de contenção parecem ter sido determinantes para o desenrolar da crise dentro da própria região da Lombardia.

Enquanto na província de Lodi, foco inicial de contágio, as medidas de contenção foram muito mais restritivas já na última semana de fevereiro, nas outras partes da Lombardia a vida continuou relativamente inalterada por mais uma semana.

Com poucos casos iniciais, as províncias de Bérgamo e Brescia tiveram um crescimento muito maior no número de contagiados e de mortes a partir da segunda semana de março. Na província de Lodi, os casos aumentaram de maneira mais controlada.

No Brasil, de forma mais intensa que na Itália, a Covid-19 tem sido alvo de atrito entre o governo federal e os governos estaduais. Diferentemente da Itália, até o momento, não foi apresentada uma estratégia nacional de contenção da epidemia.

A falta de ação do Executivo pressiona governadores e prefeitos a impor medidas emergenciais de contenção. Os governadores, por sua vez, criticam Bolsonaro por não compartilhar os custos das decisões.

A reação de Bolsonaro tem sido de crítica às medidas de quarentena adotadas pelos estados e responsabilização dos governadores pelos impactos econômicos gerados, acusando-os, inclusive, de estarem criando barreiras para o transporte de itens básicos e médicos.

Está claro que o governo de Bolsonaro não está disposto a arcar com os custos políticos das medidas drásticas num contexto em que a economia não vai bem e o Executivo é frágil.

Além da polarização entre Bolsonaro e governadores diante da epidemia, as eleições municipais de outubro colocam em evidência a atuação dos prefeitos na gestão da crise. Para os prefeitos, qualquer deslize pode ser determinante para as suas pretensões eleitorais.

A falta de coordenação das medidas de quarentena abre espaço para que ações de contenção sejam politizadas também no nível municipal, comprometendo a eficácia do controle da epidemia. Ao invés de coordenar e antecipar, as ações das autoridades federais são reativas e causam fricção.

Por um lado, a estratégia habitual de Bolsonaro de governar para uma minoria hipermobilizada parece não ser a mais eficiente para o contexto desafiante da epidemia.

Nesse novo cenário, a coordenação entre os órgãos públicos, assim como a credibilidade e a comunicação eficiente por parte das autoridades públicas se tornam fundamentais.

As desavenças entre o presidente e seu ministro da Saúde, assim como entre o presidente e os líderes do Congresso Nacional, demonstram que Bolsonaro está perdendo o apoio de setores influentes que até há pouco continuavam a apoiá-lo.

Por outro lado, ao minimizar enfaticamente a epidemia, Bolsonaro parece preferir explorar um paradoxo que se estabelece diante da evolução dos contágios.

Se as estratégias de isolamento social implementadas pelos governos estaduais e municipais forem efetivas na suavização da curva de disseminação do vírus, espera-se que o impacto sobre o sistema de saúde não seja tão dramático quanto o previsto.

Nesse cenário, o presidente poderá afirmar que tinha razão e que os efeitos da epidemia eram efetivamente superestimados.

Se as medidas causarem graves consequências sociais e econômicas, o discurso de Bolsonaro o coloca em uma posição confortável para culpar os políticos que se responsabilizaram pela quarentena.

Enquanto governos estaduais e municipais implementam a contenção, o governo federal promete injeção de recursos na economia que, embora insuficientes para minimizar danos sociais e econômicos, servem de ativo político para o presidente.

Bolsonaro, com seu método caótico e reativo à flutuação de humor das redes sociais, buscou um discurso para tentar sobreviver no cargo diante da epidemia. O pronunciamento dessa terça-feira confirma que o presidente está disposto a dobrar a aposta na inação e a explorar a impopularidade das medidas recomendadas por especialistas.

Fernanda Cimini é doutora em sociologia (UFRJ) e professora do Cedeplar (UFMG)

​Manoel Gehrke é doutor em ciência política (Universidade da Califórnia, Los Angeles), pesquisador da Universidade Bocconi, em Milão, na Itália

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