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Crise com Moro e namoro com centrão erodem base de Bolsonaro

Presidente tenta evitar risco de impeachment, mas atira contra o próprio coração no processo

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São Paulo

No manual informal dos impeachments brasileiros, três condições são centrais para o impedimento de um presidente: falta de apoio no Congresso, uma crise econômica aguda e a perda de apoio popular.

A crise de governabilidade que Jair Bolsonaro agravou com sua condução do combate ao novo coronavírus já embutia os dois primeiros itens da pauta, mas mesmo adversários ferrenhos do presidente sempre notaram que os cerca de 30% de aprovação do eleitorado eram uma arma dissuasória potente.

Com isso, fica difícil compreender a decisão do presidente de provocar a mera ameaça de demissão de Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) em meio a negociações com o centrão, que visam criar um simulacro de apoio congressual e evitar votos para um eventual processo de remoção.

Ambos os movimentos atingem diretamente o dito terço do eleitorado que está com o presidente, faça chuva ou faça pandemia.

Que Bolsonaro queria ver Maurício Valeixo fora, isso não é novidade desde agosto do ano passado, quando removeu um superintendente da PF no Rio que sabia demais acerca de investigações envolvendo o clã presidencial.

O item da vez segue sendo esse, mais a questão da investigação sobre fake news sob comando do Supremo Tribunal Federal, que tende a se sobrepor àquela sobre o ato pró-golpe militar no qual Bolsonaro falou no domingo (19).

Essa independência da PF, aliás, é um dos fatores da rixa entre Bolsonaro e Moro, cujo enredo maior diz respeito a 2022. O ministro é candidatíssimo a ser presidenciável, algo acerca de que o presidente se queixou com dois interlocutores nas últimas semanas.

Para o presidente, Moro só pensa em manter-se acima de degastes, e o bote poderá vir a qualquer momento.

Com a intenção de mexer na PF, Bolsonaro fez Moro repetir o teatro do ano passado e dizer que se Valeixo cair, ele sai. É uma saída cômoda para o ministro, que até aqui não deixou marca no cargo e parece ter se incomodado com o comportamento agressivo e negacionista do chefe ante a crise do novo coronavírus.

Há um óbvio temor de Bolsonaro sobre poder da PF, mas a questão é que Moro é uma câmara do coração do bolsonarismo. Extirpá-lo não só ameaça o órgão como cria um concorrente formidável na mesma faixa de batimentos.

Bolsonaro foi eleito por uma combinação de antipetismo e reação contrária ao sistema político alimentada por quatro anos de revelações escabrosas da Operação Lava Jato, que Moro personifica.

Como as pesquisas indicam, mesmo as revelações de condutas abusivas e os erros da ação não tiraram o apelo do ministro junto à população. É o mais popular da Esplanada.

Quando escolheu Moro ministro, após ser eleito, Bolsonaro criou uma armadilha perfeita. Se por um lado legitimou seu discurso moralizador, por outro tornou o ex-juiz numa figura quase indemissível. Assim, se por fim ficar no cargo, não é impossível que seu destino seja a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal em novembro.

O impacto de uma saída de Moro é potencialmente devastador, em especial se conjugado com a aproximação do Planalto com o centrão. Bolsonaro tem cerca de 30% de apoio do eleitorado, dado que o excedente que o levou a vencer em 2018 já se afastou ao vê-lo exercer o poder.

Desses, talvez metade seja caninamente fiel ao presidente. Esses eleitores são as mesmas pessoas para quem, no ato golpista do domingo (19), Bolsonaro pedia "o povo no poder" contra os "patifes" da "velha política".

Fica difícil aos aliados do presidente explicar o vídeo dele com Arthur Lira (Progressistas-AL), um exemplo acabado da tal velha política, em pleno congraçamento. Lira, afinal, é réu por corrupção no âmbito da mesma Lava Jato que levou Moro ao governo e ajudou Bolsonaro a estar no Planalto.

Isso fora as promessas de cargos para Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (PL) e outros luminares de escândalos políticos passados. Não é só a desmoralização de sua classificação do presidencialismo de coalizão como mero toma-lá-dá-cá: os personagens de suas críticas são os mesmos.

Com mais uma crise com Moro, o cenário fica complexo. A outra metade da base de apoio, menos ideológica e mais ligada ao repúdio legítimo às práticas da classe política, tenderá a seguir o ex-juiz para onde ele for.

Para um aliado de Bolsonaro no Congresso, a crise fora de hora evidencia o desmonte do desenho inicial do governo. Em dois dias, foram alienados seus dois ex-superministros, Moro e Paulo Guedes.

Na quarta (22), o titular da Economia teve de engolir, apenas com algum chiado sobre inexequibilidade, o anúncio de um plano com ares de planejamento militar dos anos 1970 para combater o desemprego com obras públicas.

Ambos, Guedes e Moro, por ora parecem ficar. Estarão tão enfraquecidos como o presidente, mas têm muito menos a perder que ele.

O isolamento do presidente, registrado antes da crise do novo coronavírus, já era flagrante. Governadores de estado articulados em frente, cerco judicial à sua família, Congresso tomando as rédeas da agenda reformista, tudo isso estava em curso.

A pandemia catalisou todo o processo, devido à atitude de Bolsonaro e, num segundo momento, da agressividade ao identificar o que acredita ser um complô de adversários para aproveitar a crise e removê-lo.

Nesse processo, isolou tanto o eixo central da permanência de qualquer governo, o Congresso, que a tal conspiração virou uma profecia autorrealizável. Lideranças de vários partidos e governadores, além de autoridades do Judiciário, passaram a falar sobre impeachment.

Sobrou a Bolsonaro fazer o que melhor sabe, radicalizar para sua base. Daí a sucessão, em espiral crescente, de episódios em que os arroubos autoritários do presidente foram explicitados.

A culminação foi o uso da imagem do Exército no domingo passado (19), no famigerado ato pró-intervenção militar na frente do QG da Força.

Paralelamente, como a Folha mostrou na semana passada, a ala militar do governo e aliados bolsonaristas não exatamente hidrófobos passaram a trabalhar num plano para tentar estabilizar a situação do governo.

Esse roteiro passa, a partir de consultas feitas pela cada vez mais espaçosa ala militar com políticos com as quais tem trânsito, pela tentativa de desarmar o gatilho de um impeachment.

Não é nada diferente do que Dilma Rousseff (PT) fez em 2015, quando o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, deitou as bases do que viria a ser seu impedimento no ano seguinte.

Rodrigo Maia (DEM-RJ) não é Cunha, contudo. O presidente da Câmara evitou esticar a corda quando teve a chance, ao não trabalhar pela queda de Michel Temer (MDB) na esteira do escândalo da JBS, em 2017.

Mas o tempo corre contra ele, e a aprovação de pautas-bombas contrárias a seu usual ideário liberal indica que ele sente a pressão.

Maia deixa o cargo em fevereiro do ano que vem. Uma hoje ilegal reeleição estava sendo urdida, talvez com o verniz do beneplácito do Supremo Tribunal Federal, e a moeda de troca mais vistosa que Bolsonaro tem a oferecer ao centrão é justamente o apoio para a presidência da Câmara.

É daí que vem a lógica de atrair o centrão —Lira é um dos nomes ventilados para a cadeira de Maia.

Um fato notável no processo é sua natureza endógena. Não existe risco de um pedido de impeachment liderado pelo PT ou pelo PDT de ganhar tração no Congresso atual, não menos porque a esquerda que está desabilitada de protagonismo desde 2018.

Nesse sentido, ao contrário: Lula pedindo "fora Bolsonaro" alimenta a fornalha da mentalidade de cerco do bolsonarismo e só serve ao chefe petista, que aposta em radicalismo para tentar sair da criogenia política pós-prisão.

De resto, toda a maquinação acerca de afastar Bolsonaro decorre de sua própria lavra, seja por convicção ou incompetência política. O exógeno aqui responde pelos riscos judiciais contra si e sua família, uma sombra constante sobre o governo que ficou mais opaca com a abertura de inquérito sobre o ato de domingo no Supremo.

Bolsonaro não tinha apoio parlamentar, mas contava com a concordância congressual acerca de sua agenda econômica, além da aversão a mais turbulência. Como cereja do bolo, o apoio popular não majoritário, mas suficiente para o gasto.

Como o centrão não vende apoio, mas o aluga por temporada, a tática de Bolsonaro pode até vir a lhe comprar mais prazo de validade.

Talvez sem Moro, com valas comuns da Covid-19 se multiplicando à luz da política oficial, a economia ferida de morte e seu czar sem força, além da incoerência explicitada à sua base, restará saber como o presidente manobrará para chegar até 2022.

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