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Infectado, Bolsonaro tenta usar coronavírus como aliado na crise

Presidente minimiza Covid-19, critica estados e faz propaganda da hidroxicloroquina

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São Paulo

Após quase cinco meses de negação e exposição pública em desafio aos riscos de contaminação pelo novo coronavírus, Jair Bolsonaro (sem partido) está infectado pelo patógeno que já matou 65 mil pessoas no Brasil.

Não se fez de rogado: aproveitou para fazer propaganda de seu medicamento de estimação na crise, a hidroxicloroquina, e ainda conseguiu arrumar espaço para criticar governadores de estado pelo isolamento social horizontal.

Bolsonaro usa máscara com sua imagem em conversa com jornalistas, em maio
Bolsonaro usa máscara com sua imagem em conversa com jornalistas, em maio - Adriano Machado - 22.mai.2020/Reuters

Em sua entrevista para TV Record e CNN Brasil, além da oficial TV Brasil, Bolsonaro insistiu inclusive que seu estado clínico "normal" poderia ter relação com a medicação que tomara na véspera. Comparou o vírus a "uma chuva".

Apontou uma "chance de sucesso de quase 100%" para quem toma a hidroxicloroquina nos estágios iniciais da Covid-19. Não há comprovação clínica disso, como ele mesmo admitiu em uma gravação no Facebook divulgada depois, e mesmo os EUA de seu modelo Donald Trump interromperam o uso da medicação.​

A depender da evolução da infecção, Bolsonaro poderá contar com o coronavírus como um inesperado aliado. A vitimização já começou na própria segunda, quando os filhos presidenciais postaram críticas às ironias que passaram a abundar nas redes sociais.

Afinal de contas, entre líderes mundiais, o presidente sempre foi um dos mais notórios negacionistas da seriedade da doença.

Mesmo a entrevista em que anunciou a contaminação foi ao vivo, contrariando o recomendado, feita junto aos repórteres e com direito a retirada de máscara.

Se, como para a maioria das pessoas atingidas, a Covid-19 se restringir a sintomas leves, Bolsonaro poderá dizer que foi curado pelo remédio que tanto promoveu, ainda que não haja evidências para dizê-lo.

Não será a primeira vez que um drama pessoal poderá ser usado por Bolsonaro em favor de sua imagem, hoje reduzida a um núcleo duro de 15% de apoiadores e um contingente igual de eleitores potenciais, mas não tão fiéis.

A facada que recebeu na campanha de 2018, que quase o matou, foi maximizada pelos bolsonaristas e pelo próprio presidente.

Se não é possível atribuir sua eleição a ela, como já fez o derrotado Geraldo Alckmin (PSDB), é certo dizer que ela criou uma aura algo mítica em torno da figura do então candidato —além de o isentar de debates e escrutínio ao vivo.

Como agirá Bolsonaro ainda é insondável, mas a contaminação é uma inevitável ironia. Desde a ascensão do Sars-CoV-2 no país, ele tentou negar ou minimizar o impacto da doença.

A chamou de “gripezinha” e, num já histórico pronunciamento de TV em 24 de março, repetiu o diagnóstico e afirmou que não teria problemas se contraísse a doença devido a seu “histórico de atleta”.

Fez questão de confraternizar-se com manifestantes nos atos antidemocráticos que pulularam em Brasília de março a junho, e hoje são alvo de investigação no Supremo Tribunal Federal.

Além da negação da ciência sobre o coronavírus, Bolsonaro mirava a política. O presidente sempre priorizou o temor pelo inevitável impacto recessivo da pandemia sobre a economia e, consequentemente, sobre sua popularidade.

Como bem sabem Dilma Rousseff e Fernando Collor, a combinação entre crise econômica e desarticulação política é perigosa.

Além disso, a maior parte dos governadores de estado se colocou como antítese do Planalto na condução da crise, em especial o principal adversário do presidente, João Doria (PSDB-SP).

Presidenciável como o tucano, o fluminense Wilson Witzel (PSC) acabou abatido por outro aspecto da pandemia: é alvo de investigação sobre malversação de verbas destinadas ao combate à doença, e sofre um processo de impeachment na Assembleia local.

A postura do governo federal influenciou até o embate entre Executivo e outros Poderes. O Supremo Tribunal Federal virou alvo de críticas do presidente após delegar a decisão sobre o manejo do vírus a estados e municípios.

O presidente correu riscos políticos também. Frases como "E daí?" e "Não sou coveiro", ao comentar as mortes da pandemia, tenderão a cobrar preço eleitoral à frente.

Bolsonaro, que mal conseguia colocar uma máscara no rosto quando começou a usar o apetrecho de forma intermitente, de todo modo aos poucos foi reduzindo a estridência de seu discurso.

A crescente calmaria acompanhou a piora da situação jurídica de seu entorno, com militantes bolsonaristas sendo presos e o adensamento das investigações sobre seus filhos, que chegou ao paroxismo com a prisão do ex-faz-tudo da família, Fabrício Queiroz, em 18 de junho.

Ainda assim, o Ministério da Saúde segue sem titular há mais de 50 dias. Liderada interinamente pelo general da ativa Eduardo Pazuello, a pasta teve seus principais cargos ocupados por militares, o que é alvo de críticas de especialistas no setor.

A narrativa de Bolsonaro, até na briga pela reabertura da economia com governadores, emula o percurso de seu ídolo, o presidente Trump —exceto na insistência na hidroxicloroquina, abandonada pelo americano, e até aqui pela infecção.

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