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Entenda o debate sobre direito ao esquecimento em julgamento pelo Supremo

Corte forma maioria para rejeitar a existência da doutrina no país; decisão deverá orientar outros tribunais

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São Paulo

O STF (Supremo Tribunal Federal) formou nesta quinta-feira (11) maioria para rejeitar o direito ao esquecimento no Brasil. Os ministros entenderam que a criação do instituto jurídico poderia colocar em risco a liberdade de expressão.

Até o momento, os ministros Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski votaram contra a doutrina, enquanto o ministro Edson Fachin se posicionou favoravelmente. Luís Roberto Barroso se declarou impedido para analisar o tema e não votará.

Apesar de o conceito do direito ao esquecimento não constar na legislação brasileira, ele já foi reconhecido em algumas ações judiciais em tribunais do país, como o STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Não há uma definição exata do que seja o direito ao esquecimento, mas, em linhas gerais, pode-se dizer que ele se refere ao direito de que uma pessoa não tenha um fato ocorrido em determinado momento de sua vida exposto ao público indefinidamente.

Cena de episódio do programa Linha Direta, exibido em 2004, sobre o assassinato da estudante Aída Curi, ocorrido nos anos 1950
Cena de episódio do programa Linha Direta, exibido em 2004, sobre o assassinato da estudante Aída Curi, ocorrido nos anos 1950 - Gianne Carvalho/TV Globo

Há juristas que defendem que o direito ao esquecimento não existe e que decisões de remoção de conteúdo que seja lícito ou de proibição de se mencionar determinada pessoa ou assunto podem representar ameaça à liberdade de expressão, tentativa de manipulação do passado histórico ou até censura prévia.

Com a internet e a possibilidade de encontrar facilmente informações antigas, a discussão ganha novos contornos no Brasil e no mundo.

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Qual caso o STF está julgando? O caso concreto se refere a um recurso dos irmãos de Aída Curi, jovem estuprada e assassinada no Rio de Janeiro em 1958 e que teve o episódio de seu crime reconstituído em 2004 pelo programa Linha Direta, da TV Globo. Os familiares pedem uma indenização pela exploração da imagem de Aída no programa e afirmam lutar pelo reconhecimento do direito de esquecer a tragédia.

Qual a posição dos ministros do Supremo? Prevalece o voto do relator, Dias Toffoli, acompanhado por Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.

Toffoli sustentou que admitir a existência do direito ao esquecimento “seria uma restrição excessiva e peremptória à liberdade de expressão” e ao “direito dos cidadãos de se manterem informados de fatos relevantes da história social”.

Em seu voto nesta quinta, Carmen Lúcia recordou o período do regime militar e disse que a sua geração “lutou pelo direito de lembrar” e que tomar uma decisão no sentido contrário seria inadequado.

“Em um país de curta memória, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental, nesse sentido aqui adotado, ou seja, de alguém poder impor o silência e até o segredo de fato ou ato que poderia ser de interesse público, pareceria, se existisse essa categoria no direito, o que não existe, um desaforo jurídico”, afirmou.

Lewandowski foi o responsável por dar o sexto voto, que levou à formação de maioria na corte contra o direito ao esquecimento. “Com a abrangência e generalidade que o recorrente busca ver reconhecido, esse instituto nunca encontrou abrigo no direito brasileiro”, disse. O ministro ressaltou que o irmão da vítima chegou a publicar dois livros sobre o tema, o que demonstra que não há como esquecê-lo.

Único a divergir até o momento, Edson Fachin sustentou que a existência do esquecimento deve ser analisada caso a caso e aplicada apenas em casos excepcionais.

O ministro sustentou que a liberdade de expressão tem “posição de preferência na Constituição”, mas que a Carta também prevê a preservação do “núcleo essencial dos direitos de personalidade”.

O que argumentam os familiares de Aída Curi? De acordo com eles, "mais de 50 anos depois, com suas vidas em novo rumo e com a dor apaziguada pelos efeitos curativos de tão longo tempo, a recorrida [TV Globo] veiculou em rede nacional um programa televisivo explorando não só a história de sua finada irmã, como utilizando a imagem real dela e dos recorrentes, a despeito da notificação por eles enviada, previamente, opondo-se a sua veiculação".

O que argumenta a TV Globo? A Globo, por sua vez, sustentou que o conteúdo abordado no programa se limitou a fatos públicos, retirados de arquivo e de livros, e que os direitos de intimidade e de imagem dos recorrentes e de sua irmã já falecida não se sobrepõem ao direito coletivo da sociedade de ter acesso a informações sobre fatos históricos. A TV Globo argumenta que "o defendido direito ao esquecimento é completamente incompatível com a plena liberdade de informação assegurada pela Constituição Federal".

O que o STJ entendeu no caso? O STJ negou o pedido, pois considerou que os fatos expostos no programa eram de conhecimento público e que tinham sido amplamente divulgados pela imprensa no passado. Segundo a decisão, "o direito ao esquecimento (...) não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi".

Os réus Ronaldo Guilherme de Souza Castro (de óculos escuros) e Antonio João de Souza no julgamento, em 1960, do assassinato de Aída Cury, ocorrido dois anos antes
Os réus Ronaldo Guilherme de Souza Castro (de óculos escuros) e Antonio João de Souza no julgamento, em 1960, do assassinato de Aída Cury, ocorrido dois anos antes - Folhapress

Qual a importância do caso? O julgamento do Supremo tem repercussão geral. Isso significa que o resultado deverá orientar decisões de outros tribunais sobre o tema.

Apesar de o caso em análise tratar de um programa televisivo, especialistas entendem que a decisão também deverá impactar o julgamento de episódios envolvendo direito ao esquecimento em publicações na internet.

Já houve decisões do Brasil que reconheceram o direito ao esquecimento?​ Sim. Em outra ação, também envolvendo o programa Linha Direta, o STJ entendeu que o direito ao esquecimento se aplicava e que cabia a proibição de veiculação do nome e imagens de um dos acusados na chacina da Candelária, ocorrida em 1993. Quando o episódio do programa com a reconstituição do crime foi exibido, em 2006, o réu em questão já tinha sido inocentado.

De acordo com a decisão, que determinou pagamento de indenização pela Globo, o autor da ação alegou que a exibição do programa trouxe a público uma situação que já havia sido superada e que o prejudicou em sua vida pessoal e profissional, “não tendo mais conseguido emprego, além de ter sido obrigado a desfazer-se de todos os seus bens e abandonar a comunidade para não ser morto por ‘justiceiros’ e traficantes e também para proteger a segurança de seus familiares”.

Na prática, quais as implicações do direito ao esquecimento? Esse é um dos pontos que espera-se que o STF venha a definir. No geral, o direito ao esquecimento inclui três vertentes de pedidos à Justiça: remoção de conteúdo, proibição de que determinado conteúdo seja veiculado ou, nos casos de sites de busca, como Google e Bing, a chamada desindexação. Nela, o conteúdo continua publicado, mas deixa de aparecer nos resultados das buscas.

A advogada Taís Gasparian atua na ação como representante da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), que é amicus curiae no processo. Ela sustenta que, caso se entenda que o direito ao esquecimento se refere à remoção de conteúdo, ele não se aplica ao caso de Aída Curi, pois o vídeo do programa do Linha Direta não está mais disponível.

Por outro lado, Gasparian afirma que, caso haja o entendimento do direito ao esquecimento como uma proibição de se falar de uma determinada pessoa ou de tratar de um determinado episódio que foi público, há censura prévia. “Se se tratar de uma proibição de falar de alguma coisa, estamos diante de um ato de censura prévia.”

Para ela, o caso Aída Curi está muito mais próximo do caso das biografias não autorizadas, em que o Supremo entendeu que a publicação de biografias de pessoas públicas não depende de uma autorização anterior.

A professora de direito da USP Ribeirão Preto Cíntia Rosa Lima afirma que é difícil ter um conceito do que seja o direito ao esquecimento, porque, segundo ela, trata-se é uma ponderação de valores.

Cíntia Rosa foi uma convidadas em audiência pública realizada pelo STF em 2017 para discutir o tema. De acordo com a professora, é possível adotar ferramentas para proteger a liberdade de expressão sem expor as pessoas, sendo importante avaliar a utilidade social de determinada notícia.

“A imprensa responsável deveria tomar cuidado com isso, porque geralmente, quando tratamos desses casos, são casos supersensacionalistas.”

“O debate de fundo é liberdade de expressão versus intimidade, vida privada e também identidade pessoal. É um conflito de direitos fundamentais importantes”, aponta ela.

Já Gasparian se diz contrária ao direito ao esquecimento. “Todas as pessoas, pela Constituição Federal, têm direito à informação. Se você remove uma publicação ou se você proíbe que seja publicada, você viola esse princípio, que é um princípio constitucional do direito à informação."

Qualquer pedido de remoção de conteúdo pode ser considerado direito ao esquecimento? Não. Um ponto importante do direito ao esquecimento, de acordo com Sérgio Branco, um dos diretores do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), é que ele deve se referir à circulação de uma informação que é verdadeira e cuja veiculação inicial foi lícita.

“O direito ao esquecimento seria um direito que alguém teria para controlar a circulação de informações do passado cuja circulação no passado era lícita, mas que agora no presente talvez não seja mais. É sobretudo o desejo de ter o controle sobre a circulação de informações do passado."

Isso quer dizer, segundo Branco, que pedidos judiciais de remoção de conteúdos ilícitos como “revenge porn” (pornografia de vingança) ou que contenham crimes contra a honra, como calúnia e difamação, não poderiam ser incluídos no conceito de direito ao esquecimento, até porque sua remoção pode ser solicitada por meio de outras bases legais.

Direito ao esquecimento pode ser invocado por terceiro? No caso do julgamento, além da análise quanto à aplicação do direito ao esquecimento, há ainda outro ponto que gera controvérsia.

A dúvida é se, além da própria vítima, também seus familiares poderiam reivindicar o direito ao esquecimento.

Sérgio Branco diz ter dúvidas sobre se o caso de Aída Curi seria de direito ao esquecimento, visto que ela já morreu. “Não é muito típico do direito ao esquecimento você pedir em nome de outra pessoa."

“O direito ao esquecimento, quando ele é invocado, é porque a informação do passado me traz algum prejuízo agora. A pessoa encontra dificuldade, por conta dessa informação antiga, em ter um emprego, em ter um relacionamento amoroso, passa a sofrer represália na rua, no trabalho", diz ele.

Como o tema é tratado no exterior? Um dos primeiros casos considerados como direito ao esquecimento ocorreu em 1973 e ficou conhecido como caso Lebach. O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha proibiu a transmissão de um documentário sobre uma pessoa presa e que estava às vésperas de ser solta.

A argumentação foi de que a divulgação poderia comprometer sua ressocialização e que, devido à passagem do tempo, não havia interesse público significativo em divulgar os fatos.

Outro caso emblemático ocorreu em 2014 e ficou conhecido como Mario Costeja González versus Google Espanha. Este caso, entretanto, ganha outros relevos, pois foi fundamentado com base em normas de proteção de dados pessoais.

A ação de González se referia a publicações de 1998 noticiando o leilão público de uma de suas propriedades em razão de dívidas com a seguridade social. Ele argumentava que, com o decorrer do tempo e considerando que a dívida havia sido quitada, o fato tinha se tornado irrelevante.

O Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu que um indivíduo poderia solicitar a remoção de resultados da busca envolvendo seu nome diretamente às plataformas.​

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