A nota de defesa do procurador-geral da República, Augusto Aras, sobre seu desempenho em fiscalizar a gestão pública da pandemia causou um pequeno terremoto político em Brasília.
Na noite de terça (19), quando o texto foi divulgado, a pergunta que mais se ouvia entre políticos e ministros do Supremo era: o que exatamente Aras quis dizer nas entrelinhas?
Pelo valor de face, a nota já é bastante inusual. Segundo a PGR, o procurador-geral buscava dar uma resposta pública às cobranças sobre o desempenho da cúpula do governo Jair Bolsonaro no trágico manejo da pandemia da Covid-19.
Nisso, foi claro: o problema não é dele se vocês, e aqui o "vocês" é a oposição e setores da sociedade civil, querem imputar crime de responsabilidade ao presidente. Disse Aras: eu cuido de outras coisas, esse problema é do Congresso.
Obviamente só isso já foi suficiente para gerar revolta entre colegas de Aras. Seis dos dez membros do Conselho Superior do Ministério Público Federal assinaram nota repudiando o texto do chefe e lembrando que sim, é prerrogativa da PGR de investigar o que o governo federal fez ou deixou de fazer.
Aras sonha, como tantos outros, com a vaga de Marco Aurélio Mello no segundo semestre, quando o ministro do Supremo se aposenta compulsoriamente por chegar aos 75 anos.
Assim, quem o conhece afirma que ele quis dar um recado claro a Bolsonaro, que está acossado pelos pedidos de impedimento após a tragédia da falta de oxigênio em Manaus e o fracasso da iniciativa federal de vacinação contra o Sars-CoV-2 —encimado pela vitória do rival João Doria (PSDB-SP), cuja vacina é a única disponível no país.
Até aí, indignação, mas pouca surpresa. O procurador-geral é visto como um aliado de Bolsonaro.
Mas é outro ponto, também ressaltado pelos procuradores, que deixou o mundo político com a pulga atrás da orelha.
Em sua mensagem, Aras afirma que o “estado de calamidade pública é a antessala do estado de defesa”, enquanto debulha dados óbvios sobre a impossibilidade de mexer na Constituição se tal medida for tomada.
Estado de defesa é um dispositivo constitucional de exceção, para o caso de grave crise pública em um local específico do território nacional. Apesar de ser algo que o presidente pode decretar, o Congresso analisa a medida e pode rejeitá-la.
Nele e no seu irmão ampliado para todo o país, o estado de sítio, liberdades fundamentais não são garantidas. Não há, na avaliação corrente do mundo político e do Supremo, nada que chegue perto dessa necessidade no país.
Aí que reside a dúvida. Aras fez um alerta para incrementar a dramaticidade de sua nota de defesa? Ou ouviu algo que o perturbou nesse sentido —até porque ninguém anda falando em estado de defesa ou em mexer na Constituição.
Na segunda opção, o silogismo é óbvio: se há algo de errado, deveris ser exposto.
A coisa mais próxima de uma crise incontrolável pontual ocorre no Amazonas, muito por cortesia da inação federal, mas mesmo assim não é algo que até aqui enseja tal tipo de intervenção radical.
Como a nota veio na sequência das falas de Bolsonaro insinuando que as Forças Armadas se sobrepõem à Constituição, uma vez que na sua visão são elas que garantem ou não o regime democrático, a fumaça ficou mais densa.
Em dois eventos nesta semana o presidente usou o pronome nós para falar de militares, algo que não passou desapercebido entre oficiais-generais das Forças, muitos já desgostosos da associação direta entre a crise sanitária e o fato de o ministro da saúde ser um general também do serviço ativo, Eduardo Pazuello.
Rumores dos intentos golpistas expressos por Bolsonaro no primeiro semestre de 2020, quando participava alegremente de atos pedindo o fechamento do Supremo e do Congresso, imediatamente voltaram à tona em Brasília.
Há um padrão, afinal: aquele movimento presidencial ocorreu num momento agudo da chegada da pandemia. Agora, vive-se algo talvez pior.
Pode ter sido tudo um mal-entendido de um texto oportunista de Aras, mas como as bruxas na política existem apesar da descrença nelas, o sinal amarelo voltou a ser aceso.
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