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Prisão de deputado expõe ativismo do Judiciário e levanta debate sobre riscos de precedentes perigosos

Supremo tem criado jurisprudência excepcional para conter bolsonaristas, mas medidas chama a atenção de especialistas

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Brasília

A prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) expôs a "jurisprudência da crise" criada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para enfrentar a ofensiva bolsonarista contra as instituições.

A medida se soma a várias outras que são objeto de estudo por constitucionalistas e que provavelmente não seriam tomadas em um ambiente de normalidade.

Especialistas que acompanham a rotina do Supremo elogiam a atuação da corte na proteção dos ataques à democracia, mas alertam que o ativismo do Judiciário para conter o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus aliados também pode ter o efeito contrário.

Deputado Daniel Silveira em pronunciamento, para se defender, em sessão da Câmara que confirmou sua prisão por ordem do Supremo
Deputado Daniel Silveira em pronunciamento, para se defender, em sessão da Câmara que confirmou sua prisão por ordem do Supremo - Michel Jesus - 19.fev.21/Câmara dos Deputados

Na visão de especialistas, a detenção de Silveira sob o argumento de que a publicação de um vídeo nas redes sociais com ataques ao Supremo caracteriza a flagrância do crime é um dos pontos recentes que pode criar precedente perigoso.

De acordo com a Constituição Federal, um parlamentar pode ser preso em caso de flagrante de crime inafiançável. Moraes justifica esse flagrante pelo fato de a conduta ter sido gravada e disponibilizada na internet pelo deputado federal.

As falas de Silveira foram consideradas pelo STF crimes contra a segurança nacional, por isso inafiançáveis, por conferirem ataques ao Estado democrático de direito, como a defesa do AI-5 editado pela ditadura militar. O enquadramento feito pelo ministro do Supremo, porém, provoca uma série de questionamentos.

Outro precedente recente e perigoso do Judiciário foi a abertura de um inquérito pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), também de ofício e com respaldo em decisão do STF sobre o inquérito das fake news.

O inquérito das fake news foi aberto em 2019 como uma resposta do Supremo às crescentes críticas e ataques sofridos nas redes sociais.

Desde o início, porém, a apuração foi contestada por juristas e políticos por ter sido instaurada de ofício por Dias Toffoli, então presidente do Supremo, ou seja, sem provocação da PGR (Procuradoria-Geral da República).

Somente em 2020, por 10 votos a 1, o STF decidiu pela legalidade do inquérito. São alvos dessa investigação deputados, empresários e blogueiros ligados ao presidente Bolsonaro, que sofreram medidas de busca e apreensão e quebras de sigilo.

Em relação à abertura desse recente inquérito no STJ, o temor se deve ao fato de tribunais estaduais terem começado a cogitar nos bastidores lançar mão da mesma estratégia do Supremo.

Assim, a decisão do STF de abrir em 2019 uma investigação sem provocação da PGR, o que é incomum, pode acabar se tornando um instrumento de intimidação por parte do Judiciário. Essa também é a avaliação do procurador-geral da República, Augusto Aras.

Na última sessão do Conselho Superior do Ministério Público Federal, o chefe da PGR classificou a decisão do STJ como "extremamente grave e preocupante" e disse que não descarta acionar até a Corte Interamericana de Direitos Humanos para impedir a investigação.

Segundo o procurador-geral, o precedente aberto pelo STJ é perigoso e tribunais regionais podem adotar a mesma medida para apurar a conduta de promotores e procuradores.

Aras fez essa referência porque o STJ abriu a investigação justamente para apurar a conduta de procuradores da Lava Jato. Os integrantes da operação tiveram seus celulares hackeados e, mais tarde, os invasores foram presos pela Polícia Federal.

Em um dos diálogos apreendidos que estão sob a guarda da corporação, os investigadores revelam a intenção de investigar a "evolução patrimonial" de ministros do STJ sem autorização da Justiça e de maneira ilegal.

Há outras decisões citadas como exemplos de uma jurisprudência excepcional que o STF vem criando para conter Bolsonaro.

São mencionados como exemplo o veto à posse do delegado Alexandre Ramagem no comando da Polícia Federal, a liminar do ministro Luiz Fux delimitando as atribuições das Forças Armadas e a suspensão do decreto que zerava a alíquota sobre a importação de armas.

O professor e doutor em Direito Constitucional Ademar Borges, que estuda o comportamento do STF, afirma ter a impressão de que "a maior parte do STF concorda com a tese de que a democracia brasileira está em crise" e que é devido a isso que o Supremo vem tomando decisões pouco vistas antes.

"Esse diagnóstico impactou o comportamento decisório do STF no último ano? Sim, não há dúvida de que o Supremo tem adotado uma postura mais proativa no controle de atos do Executivo e do Legislativo com o claro objetivo de proteger a democracia", diz.

Segundo ele, no meio acadêmico essa jurisprudência da crise do Supremo tem apoio na noção de "democracia militante", termo que surgiu na Alemanha no período que antecedeu a ascensão do nazismo.

"O que se procura enfatizar por meio dessa noção é que a democracia e suas instituições devem estar devidamente preparadas para acionar certos mecanismos de defesa contra ameaças autoritárias."

Ele pondera, no entanto, que o Supremo precisa adotar cautela nessa atuação mais proativa "para impedir que essas decisões sejam usadas em outros contextos com propósitos contrários à pretendida tutela da democracia".

O professor de direito constitucional Daniel Sarmento, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ressalta que sua preocupação em relação ao STF na contenção do bolsonarismo diz respeito principalmente à atuação da corte no campo penal.

A prisão em flagrante por causa de vídeo publicado nas redes sociais, segundo ele, pode servir de precedente para policiais Brasil afora prenderem pessoas pobres que criticarem a corporação.

"Não estou me referindo ao caso do deputado, mas à tese de que algo que está na internet é flagrante permanente. A prisão em flagrante não precisa de ordem judicial, pode ser decretada pela polícia", afirma.

"Por exemplo, se alguma ONG de direitos humanos ou um sujeito da favela colocar nas redes sociais que a polícia foi lá na região e violou a lei, matou pessoas e tal, meses depois o delegado poderia ir lá e prendê-lo."

O professor Sarmento também critica o "uso muito aberto de dispositivos da Lei de Segurança Nacional.

O ministro Moraes (STF) costuma recorrer a essa legislação tanto no inquérito das fake news quanto no dos atos antidemocráticos. Ao mandar prender Silveira, ele citou dez dispositivos da lei aprovada em 1983, período do regime militar. "Não acho bom, acho uma coisa perigosa", diz o professor da Uerj.

Sarmento avalia, porém, que o Supremo "mais acertou do que errou" desde o início do governo Bolsonaro e que teve uma atuação importante, por exemplo, na pandemia da Covid-19.

"A gente está em um momento de crise democrática e acho natural que nesse contexto o Supremo tente proteger não só a si mesmo mas a própria sociedade. Esse grau de ativismo em questões sanitárias, por exemplo, acho absolutamente correto."

"Se não fossem algumas decisões da corte, não seriam 250 mil mortos, mas poderia bater em 500 mil", afirma.

O professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e doutor em direito Claudio Pereira de Souza Neto, por sua vez, defende a tese de que o Supremo tem uma atuação "constitucional anticíclica".

"É um conceito geralmente usado sobre o ciclo econômico. No caso do tribunal, ele deve atuar mais ou menos da mesma maneira. Quando está diante de um governo comprometido com a democracia, cabe ao STF se autoconter. Quando está diante de um governo autoritário, ele deve ser mais incisivo no controle. E essa tem sido a orientação do Supremo", diz.

Na visão dele, as críticas à atuação da corte muitas vezes também ocorrem em razão da falta de ação do Ministério Público.

"O Ministério Público tem de se incumbir com mais eficiência do combate a atos antidemocráticos e o órgão não tem realizado essa tarefa. Há uma situação de letargia do Ministério Público no que se refere à preservação da democracia."

Veja exemplos de decisões recentes do Judiciário que expõem a 'jurisprudência da crise'

Prisão de Daniel Silveira

  • De acordo com a Constituição, parlamentares só podem ser presos em caso de flagrante de crime inafiançável. Segundo o ministro do STF Alexandre de Moraes, que decretou a prisão do deputado no mês passado, o flagrante existe porque a conduta foi gravada e disponibilizada na internet pelo deputado federal —na visão dele, o crime estava acontecendo enquanto o vídeo estava no ar.
  • A justificativa é considerada polêmica por alguns especialistas e pode abrir precedentes perigosos. Outro ponto é que a prisão não foi pedida pela Procuradoria-Geral da República, mas dada de ofício pelo ministro do Supremo.

Nomeação para a Polícia Federal

  • Moraes, do STF, suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para diretoria-geral da Polícia Federal em abril de 2020.
  • A decisão de Moraes se baseou em afirmações de Bolsonaro de que pretendia usar a PF, um órgão de investigação, como produtor de informações para suas tomadas de decisão.
  • O ministro concedeu liminar (decisão provisória) a uma ação protocolada pelo oposicionista PDT, que alegou "abuso de poder por desvio de finalidade" com a nomeação do delegado para a PF.

Inquéritos de ofício

  • Há duas semanas, o STJ abriu um inquérito para investigar mensagens hackeadas de procuradores da Lava Jato e apreendidas pela Operação Spoofing que revelaram uma tentativa de integrantes da operação de investigar de maneira ilegal ministros da corte.
  • A apuração foi aberta de ofício, ou seja, sem provocação da PGR, a exemplo do que fez o STF ao instaurar o inquérito das fake news —este também alvo de polêmica

Liminar de Fux sobre atribuições das Forças Armadas

  • O ministro Luiz Fux, do STF, delimitou, em decisão judicial de junho, a interpretação da Constituição e da lei que disciplina as Forças Armadas para esclarecer que elas não permitem a intervenção do Exército sobre o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo nem dão aos militares a atribuição de poder moderador.
  • A decisão representou uma reação do STF a movimentos ligados a Bolsonaro que pedem o fechamento da corte e do Congresso. Apoiadores do chefe do Executivo alegam que o artigo 142 da Constituição prevê a possibilidade de intervenção militar.
  • O procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou em uma entrevista que as Forças Armadas poderiam agir se "um poder invade a competência de outro". Depois, porém, afirmou ter sido mal interpretado.
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