Sem lutar uma guerra fronteiriça importante há 150 anos, os militares brasileiros sempre tiveram na soberania sobre a Amazônia um fundamento de suas preocupações estratégicas.
O temor de uma internacionalização da área, amparada na má gestão de um bem global como a floresta, deixou os quartéis e virou discurso de governo com a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência em 2019.
Isso até aqui. A condução desastrosa da pandemia de Covid-19 pelo capitão reformado do Exército ameaça tornar tangível o espectro que sempre assombrou os fardados: o de ingerência internacional no Brasil.
O tema tem sido recorrente em conversas de militares, particularmente aqueles incomodados com a adesão comandada pelo Exército ao governo, com a presença maciça de oficiais-generais da reserva no ministério —e com um membro do serviço ativo, Eduardo Pazuello, à frente da Saúde.
Afinal de contas, como disse nesta segunda (8), Bolsonaro fala em "meu Exército" ao negar a hipótese de um lockdown que de resto não ocorre no país.
O Sars-CoV-2 é a nova Amazônia, e aqui argumentos sobre soberania perdem eficácia enquanto morrem cerca de 2.000 pessoas por dia em solo pátrio.
Se os incêndios de 2019 ressuscitaram a retórica europeia de punir o Brasil por não conservar sua floresta, algo ecoado de certa forma pelo novo governo americano de Joe Biden, ali sempre se falou de retaliações comerciais pontuais e planos de auxílio.
Os delírios militares de confrontação com tropas de Paris na Guiana Francesa e a decretação da República Ianomâmi pelas Nações Unidas estavam contidos a documentos como o "Cenários de Defesa 2040", um estudo do Ministério da Defesa revelado pela Folha no começo de 2020.
Eles vinham em linha com toda a retórica do governo Bolsonaro, que por sua vez se comunica com os anos 1930, quando o livro "Aspectos Geográficos Sul-Americanos", do capitão do Exército Mário Travassos (1891-1973), deu o norte teórico para a política de integração em nome da soberania vigente desde o Brasil Colônia.
Com a Covid-19 é diferente. A combinação do negacionismo contra o distanciamento social e máscaras e da protelação na vacinação, oriunda do presidente, ameaça tornar o Brasil um celeiro de novas variantes do vírus.
Essas mutações, como a já célebre P.1 surgida em Manaus, são mais transmissíveis e potencialmente mais fatais. Com seu processo de vacinação mais acelerado, o mundo rico olha com horror a possibilidade de haver um ninho de infecções que driblem seus imunizantes logo ali.
Ao longo da semana passada, foi sendo cristalizada nos EUA a percepção do problema brasileiro. O czar do combate à Covid-19 no país, o infectologista Anthony Fauci, se colocou à disposição para auxiliar autoridades daqui.
Isso ganhou maior destaque quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) expressou grande preocupação com o cenário. Desmatamento é um problema grave e com consequências globais, mas o vírus é uma emergência ainda mais importante.
Obviamente, ao contrários das fantasias fardadas, ninguém está pensando que Joe Biden vai promover um ataque militar para tirar Bolsonaro do poder.
Ou que o líder chinês Xi Jinping já está fazendo isso ao introduzir chips que propiciam sentimentos de insurreição a partir da Coronavac, como parecem acreditar alguns aderentes da seita bolsonarista.
Mas o mundo pode, e deve, se preocupar com o que acontece aqui, não menos por motivos egoístas. Com isso, ofertas de cooperação deverão se tornar o mote, e a eventual recusa por parte dos orgulhosos brasileiros poderá resultar em uma tragédia ainda maior, com o isolamento físico do país à sua própria sorte.
Restrições de viagens às quais nos acostumamos na esperança de serem temporárias podem virar fixas, e ficará mais caro vender nossas commodities. Barreiras comerciais coercitivas poderão se tornar realidade, ainda que o real efeito delas será o de destruição ainda maior da economia e da saúde pública.
Ao fim, numa ironia histórica, esse cenário demonstra uma intervenção estrangeira convidada por um governo coalhado de militares que sempre bateram no peito contra essa possibilidade
A chegada de Biden ao poder, substituindo o negacionismo de Donald Trump, de uma cepa atenuada do de Bolsonaro, mostra que é possível mudar o rumo da pandemia com vontade política.
Os EUA viraram o ano como candidatos a "covidário do mundo", e com serenidade e senso de urgência na vacinação e no uso de máscaras, passaram o cetro para o Brasil.
Alguns militares brasileiros compartilham o horror a essa degradação, a começar pelo fato de que ela está vestida com o uniforme de Pauzello, do "faca na caveira" Elcio Franco e outros.
A essa altura, mesmo a ida do general-ministro para a reserva não resolverá o problema de imagem criado, de resto uma consequência natural à adesão ao projeto de Bolsonaro, por mais que o serviço ativo tenha tentado se afastar dele.
Outros temas correlatos provocam contrariedade, em especial os decretos para armar a população. Em reunião recente , comandante do Exército, Edson Leal Pujol, debateu o tema com o ministro Fernando Azevedo (Defesa) —outro general de quatro estrelas na reserva.
Há um temor de perda do monopólio da violência pelo Estado, e recentemente militares sinalizaram apoio a projetos no Senado que impeçam a progressão do assunto.
O tema, contudo, é solapado pela urgência da pandemia. Enquanto esse texto era escrito, cerca de 40 brasileiros morreram devido à Covid-19.
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