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Coronavírus

Bolsonaro atrai ação estrangeira ao transformar coronavírus na nova Amazônia

Preocupação externa com caos sanitário é mais real que intervenção na floresta, fantasma dos militares

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São Paulo

Sem lutar uma guerra fronteiriça importante há 150 anos, os militares brasileiros sempre tiveram na soberania sobre a Amazônia um fundamento de suas preocupações estratégicas.

O temor de uma internacionalização da área, amparada na má gestão de um bem global como a floresta, deixou os quartéis e virou discurso de governo com a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência em 2019.

Pazuello e Bolsonaro durante evento sobre vacinação contra a Covid-19 no Palácio do Planalto
Pazuello e Bolsonaro durante evento sobre vacinação contra a Covid-19 no Palácio do Planalto - Ueslei Marcelino - 16.dez.2020/Reuters

Isso até aqui. A condução desastrosa da pandemia de Covid-19 pelo capitão reformado do Exército ameaça tornar tangível o espectro que sempre assombrou os fardados: o de ingerência internacional no Brasil.

O tema tem sido recorrente em conversas de militares, particularmente aqueles incomodados com a adesão comandada pelo Exército ao governo, com a presença maciça de oficiais-generais da reserva no ministério —e com um membro do serviço ativo, Eduardo Pazuello, à frente da Saúde.

Afinal de contas, como disse nesta segunda (8), Bolsonaro fala em "meu Exército" ao negar a hipótese de um lockdown que de resto não ocorre no país.

O Sars-CoV-2 é a nova Amazônia, e aqui argumentos sobre soberania perdem eficácia enquanto morrem cerca de 2.000 pessoas por dia em solo pátrio.

Se os incêndios de 2019 ressuscitaram a retórica europeia de punir o Brasil por não conservar sua floresta, algo ecoado de certa forma pelo novo governo americano de Joe Biden, ali sempre se falou de retaliações comerciais pontuais e planos de auxílio.

Os delírios militares de confrontação com tropas de Paris na Guiana Francesa e a decretação da República Ianomâmi pelas Nações Unidas estavam contidos a documentos como o "Cenários de Defesa 2040", um estudo do Ministério da Defesa revelado pela Folha no começo de 2020.

Eles vinham em linha com toda a retórica do governo Bolsonaro, que por sua vez se comunica com os anos 1930, quando o livro "Aspectos Geográficos Sul-Americanos", do capitão do Exército Mário Travassos (1891-1973), deu o norte teórico para a política de integração em nome da soberania vigente desde o Brasil Colônia.

Com a Covid-19 é diferente. A combinação do negacionismo contra o distanciamento social e máscaras e da protelação na vacinação, oriunda do presidente, ameaça tornar o Brasil um celeiro de novas variantes do vírus.

Essas mutações, como a já célebre P.1 surgida em Manaus, são mais transmissíveis e potencialmente mais fatais. Com seu processo de vacinação mais acelerado, o mundo rico olha com horror a possibilidade de haver um ninho de infecções que driblem seus imunizantes logo ali.

Ao longo da semana passada, foi sendo cristalizada nos EUA a percepção do problema brasileiro. O czar do combate à Covid-19 no país, o infectologista Anthony Fauci, se colocou à disposição para auxiliar autoridades daqui.

Isso ganhou maior destaque quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) expressou grande preocupação com o cenário. Desmatamento é um problema grave e com consequências globais, mas o vírus é uma emergência ainda mais importante.

Obviamente, ao contrários das fantasias fardadas, ninguém está pensando que Joe Biden vai promover um ataque militar para tirar Bolsonaro do poder.

Ou que o líder chinês Xi Jinping já está fazendo isso ao introduzir chips que propiciam sentimentos de insurreição a partir da Coronavac, como parecem acreditar alguns aderentes da seita bolsonarista.

Mas o mundo pode, e deve, se preocupar com o que acontece aqui, não menos por motivos egoístas. Com isso, ofertas de cooperação deverão se tornar o mote, e a eventual recusa por parte dos orgulhosos brasileiros poderá resultar em uma tragédia ainda maior, com o isolamento físico do país à sua própria sorte.

Restrições de viagens às quais nos acostumamos na esperança de serem temporárias podem virar fixas, e ficará mais caro vender nossas commodities. Barreiras comerciais coercitivas poderão se tornar realidade, ainda que o real efeito delas será o de destruição ainda maior da economia e da saúde pública.

Ao fim, numa ironia histórica, esse cenário demonstra uma intervenção estrangeira convidada por um governo coalhado de militares que sempre bateram no peito contra essa possibilidade

A chegada de Biden ao poder, substituindo o negacionismo de Donald Trump, de uma cepa atenuada do de Bolsonaro, mostra que é possível mudar o rumo da pandemia com vontade política.

Os EUA viraram o ano como candidatos a "covidário do mundo", e com serenidade e senso de urgência na vacinação e no uso de máscaras, passaram o cetro para o Brasil.

Alguns militares brasileiros compartilham o horror a essa degradação, a começar pelo fato de que ela está vestida com o uniforme de Pauzello, do "faca na caveira" Elcio Franco e outros.

A essa altura, mesmo a ida do general-ministro para a reserva não resolverá o problema de imagem criado, de resto uma consequência natural à adesão ao projeto de Bolsonaro, por mais que o serviço ativo tenha tentado se afastar dele.

Outros temas correlatos provocam contrariedade, em especial os decretos para armar a população. Em reunião recente , comandante do Exército, Edson Leal Pujol, debateu o tema com o ministro Fernando Azevedo (Defesa) —outro general de quatro estrelas na reserva.

Há um temor de perda do monopólio da violência pelo Estado, e recentemente militares sinalizaram apoio a projetos no Senado que impeçam a progressão do assunto.

O tema, contudo, é solapado pela urgência da pandemia. Enquanto esse texto era escrito, cerca de 40 brasileiros morreram devido à Covid-19.

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