Em emails, governo admite prazo estourado e quebra de cláusulas pela Covaxin, na mira de CPI e Procuradoria

MPF vê indícios de crime em compra da vacina pelo governo Bolsonaro; Saúde e empresa responsável negam pressão

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Brasília

Em tratativas para tentar garantir a importação da vacina indiana Covaxin, o Ministério da Saúde admitiu que o prazo previsto em contrato estava estourado e buscou minimizar a quebra de cláusulas contratuais por parte da Precisa Medicamentos, responsável pelo imunizante no Brasil.

A pasta afirmou em um documento que era necessário ter "compreensão das dificuldades" encontradas no fornecimento da vacina, depois que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) negou tanto pedido de certificado de boas práticas de fabricação à Bharat Biotech, a fabricante indiana, quanto pedido de importação de doses formulado pelo Ministério da Saúde.

A compra da vacina pelo governo Jair Bolsonaro entrou na mira do MPF (Ministério Público Federal) e da CPI da Covid, no Senado.

Frasco da vacina indiana Covaxin
Frasco da vacina indiana Covaxin - Indranil Mukherjee/AFP

A Procuradoria da República no DF , no curso de um inquérito civil público, apontou cláusulas benevolentes no contrato assinado entre a Precisa Medicamentos e a pasta; quebra contratual, com o desrespeito dos prazos acertados; e suspeita de favorecimento à empresa, que faz a intermediação da vacina mais cara —US$ 15 (R$ 80,70) por dose— dentre as adquiridas pelo ministério.

Como revelou a Folha, o Ministério Público Federal enxergou indícios de crime e desmembrou a investigação. A parte relacionada à aquisição da vacina Covaxin foi enviada no último dia 16 para um ofício da Procuradoria que cuida de combate à corrupção.

No despacho que desmembrou o procedimento, a procuradora Luciana Loureiro citou a "temeridade do risco" assumido pelo Ministério da Saúde com a contratação relacionada à Covaxin, "a não ser para atender a interesses divorciados do interesse público".

“A omissão de atitudes corretivas da execução do contrato, somada ao histórico de irregularidades que pesa sobre os sócios da empresa Precisa e ao preço elevado pago pelas doses contratadas, em comparação com as demais, torna a situação carecedora de apuração aprofundada, sob duplo aspecto, cível e criminal”, afirmou a procuradora no despacho.

Tanto documentos internos do Ministério da Saúde quanto ofícios enviados pela pasta ao MPF mostram um conhecimento do descumprimento do contrato e uma tentativa de contornar a situação.

Nos dias que antecederam a análise do pedido de importação pela Anvisa, em março, houve uma intensa troca de emails entre representantes da Precisa Medicamentos e funcionários de áreas técnicas do ministério.

Em boa parte dos emails, o tenente-coronel do Exército Alex Lial Marinho, então coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde, estava copiado. A CPI deve convocá-lo para depor.

Marinho foi citado pelo servidor do ministério Luís Ricardo Fernandes Miranda, em depoimento ao MPF, como um dos responsáveis por uma pressão atípica para viabilizar a importação da Covaxin. Miranda deve depor nesta sexta-feira na CPI.

A existência e o conteúdo do depoimento foram revelados pela Folha. O tenente-coronel, que chegou ao cargo por indicação do general Eduardo Pazuello, foi demitido no último dia 8.

Um desses emails, com Marinho copiado, é de 22 de março. A mensagem se dirigiu ao fiscal do contrato entre Ministério da Saúde e Precisa Medicamentos. O assunto era “Solicitação de autorização de embarque 1ª parcela contrato 29/2021 vacina Covaxin/BBV152”.

Quatro dias antes, o setor responsável pela importação havia recebido a documentação da Precisa para a autorização de embarque. “A entrega da 1ª parcela encontra-se com atraso de cinco dias até a presente data”, cita o email.

Naquele dia, já havia descumprimento do contrato assinado com a Precisa.

Conforme o cronograma estabelecido em contrato, o primeiro lote de 4 milhões de doses deveria ser entregue em até 20 dias após a assinatura, que se deu em 25 de fevereiro. Assim, os primeiros imunizantes deveriam estar no Brasil em 17 de março.

O descumprimento contratual prosseguiu para todo o cronograma. Os 20 milhões de doses deveriam estar no país até 6 de maio. Nenhuma dose da Covaxin entrou no Brasil até agora.

Os emails internos mostram diversos desencontros entre o ministério e a empresa contratada. Em 23 de março, numa mensagem “URGENTE”, um técnico afirma a uma diretora da Precisa ter observado mais uma potencial quebra de contrato.

Ele analisou a fatura emitida por uma empresa de Singapura que faria a exportação dos primeiros 3 milhões de doses. A fatura tinha a data de 19 de março.

“Após observar a documentação, observei que está com a informação 100% advanced payment (pagamento antecipado). Informo que o contrato 29/2021 não prevê pagamento antecipado”, escreveu o servidor do ministério no email.

Menos de 20 minutos depois, a diretora da Precisa disse ter recebido uma retificação e ter enviado à pasta.

A CPI EM CINCO PONTOS

  • Foi criada após determinação do Supremo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG)

  • Investiga ações e omissões de Bolsonaro na pandemia e repasses federais a estados e municípios

  • Tem prazo inicial (prorrogável) de 90 dias para realizar procedimentos de investigação

  • Relatório final será encaminhado ao Ministério Público para eventuais criminalizações

  • É formada por 11 integrantes, com minoria de senadores governistas

O ministério também repassou à Precisa exigências feitas pela Anvisa, com apontamentos sobre discrepância em datas de validade de lotes e ausência de um documento que contemplasse aspectos técnicos de qualidade, segurança e eficácia da Covaxin.

Os documentos providenciados a partir de então não foram suficientes. Em 31 de março, a Anvisa negou pedido de importação de doses formulado pelo ministério.

O MPF cobrou explicações da pasta sobre o descumprimento do contrato.

Em 5 de maio, o diretor do Departamento de Logística em Saúde, Roberto Ferreira Dias, afirmou em documento à Procuradoria que o ministério “oficiou” a Precisa sobre o atraso na entrega de vacinas, sem explicar o conteúdo da “notificação” feita.

Segundo o diretor, a negativa do certificado de boas práticas de fabricação –feita pela Anvisa no dia anterior à negativa da importação– não deveria impedir a entrega de lotes do imunizante.

“Por se tratar de insumo de extrema importância, não só para este ministério, mas para todo o país, faz-se necessário registrar o esforço e a compreensão das dificuldades encontradas por todos os fornecedores de vacina”, afirmou o diretor.

“Todos os contratos, como Butantan, Fiocruz, União Química, Pfizer e Janssen, em algum momento da assinatura até o presente momento apresentaram alguma dificuldade, sendo este ministério responsável por auxiliá-los na resolução dos problemas”, finalizou.

A Anvisa só aprovou um pedido de importação de doses no último dia 4, com restrições de uso, diante da necessidade de estudos extras de efetividade.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que respeita a autonomia da Anvisa e que não faz pressão para aprovação de vacinas. A pasta diz que ainda não efetivou a compra de nenhuma dose da vacina Covaxin.

A Precisa afirmou que “jamais promoveu qualquer tipo de pressão e não contou com vantagens durante esse processo”. Disse ainda que o contato com o servidor que prestou depoimento ao MPF foi “de ordem técnica, para a confirmação de recebimento de documentação, seguindo o protocolo do ministério”.

Na noite de sexta (18), a Folha questionou o centro de comunicação social do Exército sobre a citação ao tenente-coronel Marinho, mas não houve resposta.

Fatura emitida e apresentada ao Ministério da Saúde, por uma empresa distinta das envolvidas nas negociações e contrato para o fornecimento da Covaxin. Documento previu pagamento antecipado.
Fatura emitida e apresentada ao Ministério da Saúde, por uma empresa distinta das envolvidas nas negociações e contrato para o fornecimento da Covaxin. Documento previu pagamento antecipado. - Divulgação

COVAXIN: CRONOLOGIA, RAIO-X DA VACINA E QUEM É QUEM NESSA HISTÓRIA

Cronologia

1ª reunião (20.11)
É feita a primeira reunião técnica no Ministério da Saúde sobre a aquisição da vacina indiana Covaxin, produzida pela Bharat Biotech.

Comitiva (06.01)
Embaixador brasileiro em Nova Déli, na Índia, recebe uma comitiva da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas. Um dos representantes é Francisco Maximiano, presidente da Precisa Medicamentos. A missão visita a Bharat Biotech.

Carta ao 1º ministro (08.01)
O presidente Jair Bolsonaro envia carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e afirma que, no programa brasileiro de imunização, estão as vacinas da Bharat Biotech.

Ofício (18.01)
Ministério envia ofício a presidente da Precisa informando querer dar início a tratativas comerciais para aquisição de lotes.

Contrato assinado (25.02)
Contrato é assinado entre Ministério da Saúde e Precisa Medicamentos para a aquisição de 20 milhões de doses.

Nova viagem (05.03)
Maximiano faz nova viagem à Índia. É recebido outra vez na Embaixada do Brasil em Nova Déli. O empresário fala em 32 milhões de doses contratadas pelo Ministério da Saúde.

Pedido rejeitado (31.03)
Anvisa rejeita pedido de importação de doses formulado pelo ministério, por falta de documentos básicos por parte da empresa responsável.

No mesmo dia, um servidor de área estratégica do Ministério da Saúde presta depoimento ao MPF em que relata pressão atípica para importação das doses, inclusive com ingerência de superiores junto à Anvisa.

Fim do prazo (06.05)
Acaba o prazo estipulado em contrato para a entrega dos 20 milhões de doses. Nenhuma dose chegou ao Brasil.

Pedido aprovado (04.06)
Anvisa aprova pedido de importação de doses, mas com restrições, diante da necessidade de estudos extras de efetividade. Nenhuma dose chegou ao Brasil.

Indícios de crime (16.06)
MPF aponta indícios de crime no contrato e envia investigação para ofício que cuida de combate à corrupção.

Raio-x:

  • Valor do contrato: R$ 1,61 bilhão
  • Doses a serem entregues: 20 milhões
  • Valor individual da dose: US$ 15 (R$ 80,70)

Preço das doses de outras vacinas contratadas:

  • Sputnik V: R$ 69,36
  • Coronavac: R$ 58,20
  • Pfizer: US$ 10 (R$ 56,30)
  • Janssen: US$ 10 (R$ 56,30)
  • AstraZeneca/Oxford: US$ 3,16 (R$ 19,87)

Quem é quem:

Precisa Medicamentos: é a empresa que assina o contrato com o Ministério da Saúde. Representa no Brasil a farmacêutica indiana Bharat Biotech.

Francisco Emerson Maximiano: sócio-administrador da Precisa Medicamentos. É o empresário que foi à Índia para viabilizar a representação da vacina Covaxin no Brasil. Também se apresentou como representante de clínicas privadas de vacinação. Maximiano é presidente da Global Gestão em Saúde.

Global Gestão em Saúde: a empresa foi acionada na Justiça pelo MPF por pagamentos antecipados e indevidos feitos pelo Ministério da Saúde. O valor soma R$ 20 milhões. Segundo a ação de improbidade, a Global não forneceu medicamentos para doenças raras e, mesmo assim, recebeu pagamentos antecipados. Catorze pacientes morreram, segundo o MPF.

Tenente-coronel do Exército Alex Lial Marinho: do grupo próximo do general Eduardo Pazuello, e indicado por ele ao cargo, Marinho foi coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde. Parte da pressão para tentar a importação da Covaxin, apesar da falta de documentos junto à Anvisa, partiu do tenente-coronel, segundo depoimento de servidor ao MPF.

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