Entenda texto que substitui Lei de Segurança Nacional após sanção com vetos de Bolsonaro

Presidente sancionou parcialmente projeto que estabelece crimes contra o Estado democrático de Direito e revoga lei de cunho autoritário

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São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos parciais o projeto que revogou a Lei de Segurança Nacional, editada na ditadura militar, e que define os crimes contra o Estado democrático de Direito.

Com a sanção presidencial, a LSN está revogada, mas parte dos crimes aprovados pelo Congresso estão vetados. A lei entra em vigor contados 90 dias desta quinta-feira (2).

Dois dos itens vetados pelo presidente já tinham sido alvo de senadores governistas, incluindo Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), ao longo da tramitação: aquele que prevê aumento de pena quando os crimes forem cometidos por militares e o item que criminaliza o atentado a manifestações democráticas.

Também foi vetado o crime de comunicação enganosa em massa —espalhar ou promover fake news que possam comprometer o processo eleitoral.

O Congresso ainda pode derrubar o veto presidencial. Para tanto, é preciso maioria absoluta dos votos na Câmara e no Senado, ou seja, 257 votos de deputados e 41 votos de senadores.

A proposta tinha sido aprovada pelo Senado no último dia 10, em meio à escalada do discurso golpista do presidente. O relator do projeto, o senador Rogério Carvalho (PT-SE), fez apenas mudanças pontuais de redação em relação ao texto da Câmara, que tinha sido aprovado em maio, sob a relatoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI).

Entre os especialistas consultados pela Folha é unânime a opinião de que a LSN não era compatível com o regime democrático e que, por seu cunho autoritário, deveria ser revogada. Em tempos recentes, a lei tem sido utilizada para perseguir críticos ao governo.

Entre os itens vetados pelo presidente o único artigo que foi alvo de críticas ou receio entre especialistas consultados foi o de comunicação enganosa em massa. Os demais itens vetados eram considerados positivos.

Entenda abaixo as críticas à LSN, o texto aprovado pelo Congresso e os itens vetados pelo presidente.

Por que a LSN era alvo de críticas? Aprovada em 1983, ainda na ditadura, a lei era vista por muitos como um entulho autoritário. Um dos argumentos é o de que ela foi feita baseada na lógica de um inimigo interno, sendo destinada a silenciar críticos. Assim, ela feriria preceitos fundamentais da Constituição de 1988, como do pluralismo político e da liberdade de expressão.

Um dos pontos mais criticados da LSN era o artigo que determinava pena de até quatro anos de prisão para quem caluniar ou imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.

A LSN tem sido usada tanto contra críticos do governo de Jair Bolsonaro quanto em investigações que miram bolsonaristas em ataques ao STF e ao Congresso, como os inquéritos dos atos antidemocráticos e das fake news em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

O que estabeleceu o projeto aprovado pelo Senado? Pelo texto aprovado, os crimes políticos deixam de constar em uma lei específica, como é o caso da LSN, e passam a compor o Código Penal, sob o título de crimes contra o Estado democrático de Direito.

Um dos desafios da legislação era de que ela não terminasse por revogar a LSN, considerada autoritária, mas trazendo novos riscos à liberdade de manifestação e de expressão.

O projeto dividia os crimes em cinco capítulos, sendo eles os crimes contra a soberania nacional, contra as instituições democráticas, contra o funcionamento dessas instituições nas eleições, contra o funcionamento dos serviços essenciais e, por fim, os crimes contra a cidadania.

O presidente vetou parte do capítulo relacionado às eleições e integralmente o capítulo dos crimes contra a cidadania, que tinha apenas um artigo.

Quais foram os itens vetados por Bolsonaro? A decisão do presidente inclui veto a cinco trechos. Um deles é o crime de comunicação enganosa em massa —espalhar ou promover fake news que possam comprometer o processo eleitoral. O argumento do Planalto é que a proposta não deixa claro se a conduta criminosa seria de quem gerou ou compartilhou as informações falsas. Ele aponta também a insegurança jurídica na definição sobre o que é compreendido como inverídico ou não.

Este item também foi alvo de críticos entre especialistas consultados pela Folha. Parte entende que ele poderia trazer riscos à liberdade de expressão. Também houve críticas ao fato de o projeto ter incluído crimes relacionados a eleições no Código Penal, e não no Código Eleitoral.

Outro veto do presidente foi ao artigo que criminaliza o atentado ao direito de manifestação. O argumento do chefe do Executivo é a dificuldade de caracterizar o que é manifestação pacífica, "o que geraria grave insegurança jurídica para os agentes públicos das forças de segurança responsáveis pela manutenção da ordem".

O presidente vetou ainda o aumento de pena quando os crimes contra o estado de direito forem cometidos por militares ou outros agentes públicos. "Viola o princípio da proporcionalidade, colocando o militar em situação mais gravosa que a de outros agentes estatais, além de representar uma tentativa de impedir as manifestações de pensamento emanadas de grupos mais conservadores", diz o veto.

Bolsonaro recuou do veto ao artigo 4º do projeto de lei, que revogava a LSN. Como a Folha mostrou, auxiliares militares o pressionavam neste sentido. Eles argumentavam que a derrubada da LSN atentaria contra a soberania nacional. Caso este veto tivesse se concretizado, o cenário seria de grande insegurança jurídica, segundo especialistas, dado que o parte dos novos crimes substituem os antigos.

Qual foi a avaliação geral de especialistas sobre a texto aprovado pelo Senado?

O advogado e professor de direito da Unisinos-RS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) Lenio Streck foi favorável ao texto nos moldes como foi aprovado na Câmara e mantido pelo relator no Senado.

“O projeto de lei representa um avanço, fundamentalmente porque, primeiro, revoga a LSN e todos os seus resquícios autoritários. Segundo, porque tipifica condutas que vão na contramão da democracia e que representam ameaça às instituições democráticas.”

Na avaliação de Streck, o texto foi bem-sucedido em evitar redações abertas que dessem margem a usos abusivos da lei.

O professor de direito penal da PUC-RS e autor do livro “Crime Político, Segurança Nacional e Terrorismo”, Alexandre Wunderlich, considerou o projeto bom, apesar de fazer a ressalva de que há partes dele que poderiam ser aperfeiçoadas.

“Não há lei perfeita, é feita por seres humanos. Esta espécie de matéria, que lida com direitos e liberdades, não é de simples tipificação, há tipos abertos e que merecerão exame acurado da jurisprudência dos tribunais. Isto é da essência da ciência do Direito.”

Flávia Pellegrino, coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia (iniciativa que reúne mais de 150 organizações da sociedade civil), afirmou que a avaliação é de que, apesar de ainda haver algumas preocupações em relação a itens do texto, o saldo da aprovação é muito positivo.

“A democracia ganha com a revogação de uma legislação que deveria ter sido extinta junto com a ditadura e que vem sendo ampla e arbitrariamente utilizada pelo atual governo em desrespeito a princípios básicos de uma sociedade democrática.”

Como ponto negativo, ela destacou o item que trata da comunicação enganosa em massa. “Pode abrir brechas para cerceamento da nossa liberdade de expressão, ainda que o dispositivo se origine de boas intenções relacionadas ao combate aos processos de desinformação nas redes e fake news”, argumentou. O item acabou revogado pelo presidente.

O advogado Marco Antonio da Costa Sabino, membro do Instituto Liberdade Digital, considera que ao longo da tramitação, o texto melhorou e ficou muito mais equilibrado. Apesar disso, ainda vê com receio alguns artigos da lei.

“É um projeto casuístico, feito para o momento em que o Brasil vive, e perigoso, porque pode ser apropriado por grupos prevalentes para calar a minoria.”

Ele ressaltou como positivo o artigo que traz uma série de situações que não poderão ser enquadradas nos crimes previstos no texto.

Tal trecho determina que a manifestação crítica aos poderes constitucionais; a atividade jornalística e a reivindicação de direitos e garantias constitucionais (por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais) não constituem crime.

Para o professor de teoria e história do direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Diego Nunes, o ideal seria a aprovação de um novo Código Penal que incluísse os crimes contra o Estado democrático de Direito, mas, considerando as dificuldades para que isso aconteça, ele avalia que o projeto atual é um passo positivo.

“Até que advenha um novo Código Penal de cariz democrático, com a devida proteção da ordem constitucional, a aprovação do PL está de bom tamanho, mesmo sabendo que se pode avançar”, afirma.

Ele critica contudo o trecho com crimes relativos a processos eleitorais. Na avaliação dele, esta parte deveria ter sido tratadas na reforma do Código Eleitoral. Parte dos destes itens foi vetada por Bolsonaro.

Quais trechos governistas tentaram excluir e que foram vetados por Bolsonaro? Durante a tramitação, senadores governistas apresentaram diversas propostas de emenda ao texto. Uma das principais teve apoio, entre outros, de Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), mas tinha sido rejeitada.

A emenda pretendia retirar dois itens do projeto que acabaram vetados pelo presidente. Um deles era o item que tornava crime o atentado a direito de manifestação. A justificativa dos autores da emenda é de que o dispositivo dificulta a caracterização do que seria uma manifestação pacífica, "gerando grave insegurança jurídica para os órgãos responsáveis pela manutenção da ordem''.

O outro item se referia à pena aumentada para militares com perda de patente, os governistas argumentavam que a previsão "cria verdadeira ameaça para inibir a atuação das forças de segurança na preservação da ordem pública''. O presidente vetou não só o aumento de pena para militares como também para funcionários públicos.

Ao comentar o debate legislativo, Alexandre Wunderlich, apontou que a aprovação da emenda "atenderia apenas interesses corporativos''.

Já o professor Diego Nunes (UFSC) rebateu a argumentação de que o artigo criaria um engessamento das atividades policiais e destacou que o Código Penal já tem previsões relacionadas a ações por obediência hierárquica e pelo estrito cumprimento de dever legal e que apenas excessos são passíveis de punição atualmente.

"O que a nova lei prevê é que a PM e as Forças Armadas não intervenham como tutoras do direito de manifestação, inspirando temor ao seu exercício''.

Quanto aos militares, ele destacou que também servidores civis têm pena aumentada de acordo com o projeto. "Dada a sua função o dever de respeito às instituições democráticas é fundamental, pois afinal [servidores e militares] estão agindo 'por dentro' delas'', afirmou.

Confira abaixo os crimes contra o Estado democrático de Direito aprovados pelo Congresso e quais foram vetados pelo presidente:

Crimes contra a soberania nacional

O capítulo dos crimes contra a soberania nacional inclui os crimes de atentado à soberania, espionagem e atentado à integridade nacional.

Tais crimes buscam proteger o país em relação a atores externos assim como de ações que visem, por exemplo, separar parte do território nacional.

No crime de espionagem, há uma ressalva de que não constitui crime a comunicação de informações ou documentos quando o objetivo é expor a prática de crime ou a violação de direitos humanos.

Crimes contra as instituições democráticas

Estão previstos neste capítulo os crimes de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado democrático de Direito.

Este último prevê pena de quatro a oito anos para aquele que “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

Já no caso de golpe de Estado, a pena é de quatro a 12 anos.

Crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais

Este capítulo, que em versões anteriores continha outros itens, prevê apenas o crime de sabotagem, com pena de dois a oito anos para aquele que, com o fim de abolir o Estado democrático de Direito destruir ou inutilizar “meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional”.

Crimes contra a cidadania (vetado)

Criminaliza o atentado a direito de manifestação, que seria o ato de “impedir, mediante violência ou grave ameaça, o livre e pacífico exercício de manifestação de partidos políticos, de movimentos sociais, de sindicatos, de órgãos de classe ou de demais grupos políticos, associativos, étnicos, raciais, culturais ou religiosos”.

Crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral (vetado em parte)

A princípio, estavam previstos três crimes neste capítulo: interrupção do processo eleitoral, violência política e comunicação enganosa em massa —este último foi vetado. Especialistas criticaram a inclusão de tema eleitoral no Código Penal.

O texto criminaliza a ação de "impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação". A pena é de três a seis anos.

A mesma pena se aplica ao crime de violência política, que consiste em restringir, impedir ou dificultar “o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, com emprego de violência física, sexual ou psicológica.

Houve veto ao item que criminalizava a ação de promover ou financiar campanha ou iniciativa "para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral". O enquadramento só ocorreria quando a disseminação ocorre mediante uso de “expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada”. A pena era de um a cinco anos.

Exceções à aplicação dos dispositivos

Este artigo cria uma exceção à aplicação dos novos crimes. Ele determina que a manifestação crítica aos poderes constitucionais; a atividade jornalística e a reivindicação de direitos e garantias constitucionais (por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais) não constituem crime.​

Aumento de pena para militares e funcionários públicos (vetado)

Outro veto do presidente barrou o aumento de pena em um terço para militares e funcionários públicos. No caso dos militares haveria também perda de posto e da patente, enquanto funcionários públicos perderiam o cargo ou função.

Tal item incluía também o aumento de pena quando o crime fosse cometido com violência ou grave ameaça, com uso de arma de fogo.

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