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Folha faz debate interno sobre limites do pluralismo

Projeto editorial do jornal e publicação de opiniões polêmicas foram temas de reunião

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São Paulo

Os critérios para a publicação de textos de opinião —e os limites dessas decisões editoriais— foram tema de um debate interno na Folha, nesta quarta (2).

Durante 3,5 horas, mais de 220 jornalistas participaram, virtualmente, da conversa que teve como tema central o pluralismo, um dos principais pilares do Projeto Editorial do jornal.

A discussão interna é uma de várias iniciativas tomadas após a publicação do artigo "Racismo de Negros contra Brancos Ganha Força com Identitarismo", na Ilustríssima, em 15 de janeiro.

Três telas de computador, nas quais se veem participantes de videoconferência. Na tela central está a editora, uma moça negra, de cabelos curtos.
A editora de Diversidade, Flavia Lima, coordena seminário interno sobre limites do pluralismo de opiniões - Marlene Bargamo/Folhapress

No texto, o antropólogo baiano Antonio Risério afirma que "o racismo negro é um fato" e discorda da definição de que só há racismo quando existe opressão.

Risério cita casos de ataques a brancos por parte de negros e afirma que "militantes pretos, como pastores evangélicos, querem o poder".

Contrários à veiculação do artigo, 208 jornalistas da Folha (dos quais 16 anônimos) encaminharam no dia 19 uma carta dirigida à Direção do jornal em que alertam para o risco de publicar de forma "recorrente conteúdos racistas".

O documento afirma que "buscar audiência às expensas da população negra é incompatível com estar a serviço da democracia".

"O racismo é um fato concreto da realidade brasileira, e a Folha contribui para a sua manutenção ao dar espaço e credibilidade a discursos que minimizam sua importância", diz trecho da carta.

Na abertura do debate desta quarta, o diretor de Redação da Folha, Sérgio Dávila, disse que o abaixo-assinado deixou clara a necessidade de rever procedimentos para que a comunicação interna seja mais fluida e desimpedida.

"Este seminário honra e reforça nossa prática de crítica e autocrítica, independência e, principalmente, pluralidade, pontos que são cláusulas pétreas de nosso projeto editoral", afirmou

Além do encontro desta quarta, será feito um seminário externo, aberto ao público, sobre questão racial e pluralidade.

Internamente, serão feitas ainda reuniões com cada uma das editorias, e um comitê de jornalistas negros, aberto à participação de toda a equipe, está sendo formado.

As medidas se somam a iniciativas por maior diversidade na Folha tomadas desde 2019, como o programa de treinamento exclusivo para negros, que está com inscrições abertas para a sua segunda edição.

O jornal ampliou o número de colunistas negros, adotou a diversidade como diretriz na formação do novo Conselho Editorial e o lançou, em novembro, o Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial), indicador desenvolvido pelos economistas Michael França, Sérgio Firpo e Alysson Portella.

Em abril de 2019, criou o cargo de editor de Diversidade, atualmente ocupado pela jornalista Flavia Lima, ex-ombudsman da Folha, que coordenou o debate interno.

Flavia propôs quatro questões derivadas da repercussão provocada pelo artigo de Risério:

1) a definição de racismo estrutural pode ser colocada em xeque?

2) negacionistas podem falar?

3) em que termos se estabelece a relação entre a defesa do pluralismo e a obrigação de entregar ao leitor informação de qualidade, com espírito crítico e compromisso com os fatos?

4) afinal de contas, quais são os limites do pluralismo? Eles existem?

Em nome dos signatários da carta, a repórter Natália Silva argumentou que há valores fundamentais —como a defesa dos direitos humanos e do regime democrático— nos quais os jornalistas não devem se sentir obrigados a "abrir espaço para o contraditório em nome do equilíbrio".

"Por exemplo, ainda que a vacinação seja um consenso científico, há um movimento antivacina no Brasil. Isso é um fato. E ele deve ser pautado pela imprensa. Mas falar do movimento antivacina é diferente de abrir espaço para um texto de opinião de um antivacina", comparou a repórter.

Ela apontou ainda o que considera uma contradição entre a publicação de artigos como o de Risério, crítico da noção de racismo estrutural, ​e a adoção de ações como o treinamento para negros e o Ifer, que "desenham o perfil de uma empresa que acredita na existência do racismo estrutural".

Natália afirmou que não é papel dos jornalistas interditar debates na esfera pública, mas editores devem evitar a publicação de textos com argumentos falsos "só porque existem pessoas que pensam assim".

"Em que momento passamos a concordar que o racismo deveria pertencer à esfera da controvérsia legítima? Ou seja, entrar no campo daquilo que pode ser questionado?", perguntou a repórter durante o debate.

Para ela, deve haver limites à publicação de algumas opiniões, porque jornalistas influenciam "as fronteiras do que é ou não uma controvérsia legítima".

O limite para a publicação de textos opinativos na Folha é a violação patente das leis, afirmou Vinicius Mota, secretário de Redação, respondendo à pergunta que deu título ao seminário.

Segundo ele, o Projeto Folha orienta os editores a procurar o pluralismo —entendido como diversidade de opiniões— "em sua latitude máxima".

"A tarefa dos editores é quase um ascetismo; precisamos publicar diariamente ideias das quais discordamos, em prol da máxima diversidade."

De acordo com o secretário de Redação, nenhum tema está excluído a priori, ainda que possa incomodar a uma parcela da sociedade, "até porque uma das diretrizes do projeto é dar atenção a opiniões minoritárias".

Além disso, diz Mota, não é função do jornal tutelar seus leitores. "Lidamos com interlocutores adultos. Não temos a ideia pretensiosa de decidir o que eles devem ou não ler. Não estamos educando o leitor, estamos informando", afirmou.

Segundo ele, o melhor método de combater uma ideia da qual discordamos é expô-la ao debate público, em vez de censurá-la.

"Banir uma ideia não a silencia, apenas a empurra para outro lugar, sem expô-la ao contraditório duro, como o que é feito na Folha."

Já em relação ao artigo específico publicado pela Ilustríssima, Dávila afirmou que, em retrospecto, o jornal vê equívocos em sua publicação, principalmente nas redes sociais. "Não deixamos claro que se tratava da opinião do articulista, não da Folha", disse o diretor de Redação.

Segundo ele, na edição impressa, a avaliação posterior foi a de que teria sido melhor opção editá-lo na seção Tendências/Debates, junto a outro artigo de opinião diversa.

"O grande mérito desse caso foi termos retomado o diálogo, uma prática da Folha interrompida pela pandemia, mas fundamental", afirmou o diretor.

Sempre que surgem dúvidas sobre os limites e responsabilidades da atuação jornalística, o jornal promove discussões internas das quais participam toda a equipe.

Foram temas de seminários internos, por exemplo, a cobertura do caso da Escola Base (de 1994), do Mensalão (de 2005), da Operação Lava Jato (iniciada em 2014) e sobre cotas raciais.

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