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Incra suspende atividades no governo Bolsonaro por falta de verba

Ofício do órgão manda cancelar até entrega de títulos de terra, foco do presidente; instituto fala em 'medidas de gestão'

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Brasília

O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) informou internamente nesta sexta-feira (13) estar sem nenhuma verba de livre destinação e determinou a suspensão de atividades.

Entre elas estão os eventos de entrega de título de propriedade a beneficiários da reforma agrária, ação que virou uma febre no governo Jair Bolsonaro (PL).

Em ofício enviado no início da noite às superintendências regionais, o presidente do órgão, Geraldo Melo Filho, traça um cenário de penúria orçamentária e ordena que mesmo atividades técnicas de campo, como vistorias, fiscalizações e supervisões, devem ter autorização prévia da direção, estando vedadas "quaisquer novas ações a serem iniciadas" que envolvam deslocamento e diárias.

Bolsonaro participa de cerimônia de entrega de títulos de propriedade no Estado do Mato Grosso do Sul - Marcos Corrêa-15.mai.2021/Folhapress

No ofício, obtido pela Folha, o presidente do Incra afirma que as ações da autarquia tem ocorrido graças ao direcionamento das chamadas emendas de relator, que é a verba federal controlada pelo Congresso Nacional, mas que nenhum centavo dessa fonte chegou em 2022.

"Como é de conhecimento geral, as ações finalísticas do Incra têm a totalidade de seus recursos como indicador RP-9 [rubrica das emendas de relator], pendentes de indicação por parte do relator geral do orçamento", afirma Melo Filho no documento.

"Nesse cenário, já estamos no mês de maio de 2022 e, até o momento, este instituto não teve disponibilizados recursos para esse fim, pelo fato de que todo o orçamento finalístico do Incra se
encontra indisponível, e não pode ser utilizado de forma discricionária pela autarquia", completa.

Em nota divulgada na tarde deste sábado, o Incra diz não ter suspendido as atividades da autarquia, embora confirme todas as suspensões noticiadas, as quais se refere como medidas de gestão com vistas à responsabilidade fiscal.

"O Incra esclarece que o ofício circular nº 731 expedido pela presidência não suspende as atividades da autarquia. Ao contrário disto, o documento trata das medidas de gestão a serem observadas para que a atuação prioritária —de supervisão e vistoria— continue a acontecer, cumpridos os requisitos da Lei de Responsabilidade Fiscal", diz o texto.

A nota afirma ainda que a suspensão de deslocamento para eventos permite priorizar as ações obrigatórias já em andamento, como "forças-tarefa e ações em estados com recursos orçamentários já aportados e eventos previamente autorizados pelas referidas diretorias".

O Incra afirma ainda na nota que "tão logo seja equacionada a disponibilidade orçamentária, assunto no qual o Incra tem recebido apoio do governo gederal e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, será feita a reprogramação das atividades da autarquia para a retomada de todas as atividades externas".

Como mostrou a Folha, a gestão Bolsonaro transformou radicalmente o programa de reforma agrária brasileiro, que em todo o seu governo foi gerido pela bancada ruralista.

Em três anos, houve uma profusão de paralisações de processos, estrangulamento orçamentário, a quase total suspensão da aquisição de terras e do assentamento de famílias, tendo o Incra direcionado seu foco a uma maratona de entrega de títulos de propriedade às famílias que foram assentadas pelas gestões anteriores.

A titulação insere-se no objetivo político de esvaziar a influência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) sobre os assentados, além de buscar abrir uma frente eleitoral em um terreno tradicionalmente controlado pelos partidos de esquerda.

Só em 2022, por exemplo, Bolsonaro já participou de sete eventos de entrega de documentos de propriedade, ocasiões em que o clima se assemelha a palanque eleitoral, com beneficiados sendo levados ao palco para receber os papéis das mãos do presidente.

Em um evento na tarde deste sábado (14), Bolsonaro afirmou que a política adotada pelo governo fez o assentado ficar do seu lado.

"O integrante do MST, o assentado, ao receber um título de propriedade, passou a ser um cidadão e ficou do nosso lado. Quando estava do outro lado, ele era obrigado a seguir orientações de João Pedro Stédile, entre outros marginais. E hoje em dia, ao receber o título de terra, passou para o lado do bem e é parceiro do fazendeiro", disse por videoconferência no lançamento da pré-candidatura do deputado federal Major Vitor Hugo (PL) ao Governo de Goiás.

Ele declarou ainda que as mudanças têm como objetivo prejudicar o MST. "Nós, desde o começo [do governo], tivemos uma política firme contra as ações das lideranças do MST, quando começamos a titular terras pelo Brasil."

Na ordem de paralisação das atividades distribuída nesta sexta, o presidente do Incra cita explicitamente os eventos de entrega de título.

"Em razão da atual indisponibilidade de recursos para a execução de atividades finalísticas da autarquia, informa-se que devem ser suspensas quaisquer atividades que envolvam deslocamentos para eventos, mesmo que entrega de títulos, uma vez que os recursos deverão ser priorizados em ações entendidas como urgentes e obrigatórias pela Sede."

A Constituição determina que os beneficiários da reforma agrária devem receber documentos relativos à propriedade, inegociáveis por dez anos. Há títulos provisórios e definitivos, que são concedidos após um trâmite burocrático que envolve não só questões administrativas, como a evolução da consolidação do assentamento e da produção dos assentados.

Movimentos sociais, partidos de esquerda e especialistas são contra a política atual de distribuição de títulos. Argumentam, entre outros pontos, que feita de forma isolada e sem planejamento irá precarizar assentamentos e levar parte das terras a voltar às mãos de latifundiários e do agronegócio.

O orçamento federal para aquisição de terras desabou de R$ 930 milhões em 2011 para R$ 2,4 milhões neste ano, o mesmo ocorrendo com a verba discricionária total do Incra, que caiu de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.

A incorporação de terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária, que nos governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 1995 a 2010, somou quase 70 milhões de hectares, praticamente desapareceu sob Bolsonaro, assim como o número de novas famílias assentadas.

Já a entrega de títulos de propriedade provisórios ou definitivos observou um salto sob Michel Temer (MDB), logo após a edição da lei 13.465/2017, que flexibilizou o processo de regularização fundiária, e virou uma febre sob Bolsonaro, que em três anos e três meses de governo entregou 337 mil títulos, um recorde.

Veja a ordem expedida por Geraldo Melo Filho nesta sexta-feira.

Incra manda suspender atividades no governo Bolsonaro por falta de verba
Ofício em que o Incra manda suspender atividades no governo Bolsonaro por falta de verba - Divulgação

A REFORMA AGRÁRIA SOB BOLSONARO

Janeiro de 2019

  • Bolsonaro assume deslocando o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) da Casa Civil da Presidência para o Ministério da Agricultura, pasta que entregou à bancada ruralista

Novembro de 2019

  • Documento interno do próprio Incra informa que havia 111 mil hectares prontos para a reforma agrária, com capacidade para assentar 3.862 famílias, mas que tudo estava parado

Dezembro de 2020

  • Associações de trabalhadores rurais e cinco partidos de oposição (PT, PSB, PC do B, PSOL e Rede) ingressam no Supremo com ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental) para obrigar o governo a retomar a execução da reforma agrária

Fevereiro de 2021

  • Segundo o Incra, havia 87,5 milhões de hectares de terras distribuídos em 9.400 projetos de assentamento, onde viviam 967 mil famílias. As áreas equivalem aos tamanhos de Espanha e Alemanha somados, ou 10,3% do território brasileiro

Abril de 2021

  • Sob o comando de Augusto Aras, a PGR (Procuradoria-Geral da República) se manifesta contra a ADPF das associações de trabalhadores rurais e partidos de oposição sob o argumento, entre outros, de que a gestão da política pública da reforma agrária é de competência exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo, não cabendo ingerência do Judiciário com a amplitude pretendida

Junho de 2021

  • O então ministro do STF Marco Aurélio Mello rejeita a ADPF sob o argumento, entre outros, de que "ao Supremo não cabe substituir-se ao Executivo federal, implementando política neste ou naquele sentido". Os autores da ação apresentaram recuso, ainda não julgado. Com a aposentadoria de Marco Aurélio, o relator passou a ser André Mendonça, indicado por Bolsonaro

Março de 2022

  • O governo Bolsonaro afirma ter entregue 337 mil títulos provisórios ou definitivos aos assentados da reforma agrária, um recorde
  • O MST diz haver no país mais de 100 mil famílias morando sob "lonas pretas" em invasões pelo país, aguardando desapropriação das terras e criação de assentamentos da reforma agrária
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